Mais de cinco anos depois, o fim de uma era: acabou o decreto-lei que reconhece os documentos vencidos válidos
Foto: Leonardo Negrão

Mais de cinco anos depois, o fim de uma era: acabou o decreto-lei que reconhece os documentos vencidos válidos

Governo não vai renovar o decreto, que chega ao fim neste quarta-feira, dia 15 de outubro, mesmo que alguns imigrantes continuem sem conseguir a renovação do título de residência.
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Todo imigrante que está em Portugal nos últimos cinco anos e meio conhece bem o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, atualmente na versão n.º 85-B/2025. É o famoso decreto que reconhece — ou deveria reconhecer — como válidos os títulos de residência vencidos. Desde 2020, há mais de cinco anos, quando Portugal e o mundo enfrentavam o horror da pandemia de Covid-19, este documento tem sido um companheiro constante, seja no bolso, na carteira ou no celular.

O decreto está sempre à mão para ser apresentado em uma eventual abordagem da Polícia de Segurança Pública (PSP) ou da Guarda Nacional Republicana (GNR). É também a ele que o imigrante recorre quando precisa comprovar a uma instituição pública ou privada que não está em situação ilegal no país, mas apenas irregular do ponto de vista administrativo — já que a renovação das autorizações de residência tem sido uma dificuldade crônica há anos.

Hoje, quarta-feira, 15 de outubro, depois de diversas prorrogações, este decreto deixará de existir. O Governo de Luís Montenegro, no poder desde abril de 2024 (reeleito em maio nas eleições antecipadas) decidiu que chegou a hora de encerrar este capítulo, que vinha sendo sucessivamente prolongado desde 13 de março de 2020.

Essa foi a data da primeira publicação do decreto-lei no Diário da República (DRE). Na época, o cenário era outro: pandemia, confinamentos e incerteza sobre o futuro. Manter os documentos válidos naquele período foi uma decisão do então primeiro-ministro António Costa, para assegurar os direitos dos imigrantes em um momento em que os atendimentos presenciais eram impossíveis e o sistema online de renovações ainda não existia.

Parte da imprensa nacional e até internacional noticiou erroneamente o decreto como uma regularização em massa de imigrantes durante a pandemia. Inicialmente, ele terminaria em 30 de junho de 2020, mas acabou sendo renovado por causa da continuidade da pandemia. Mesmo após o início da retomada da normalidade, o decreto continuava sendo prorrogado, embora com menos artigos, mas mantendo sempre a validade dos documentos vencidos.

Ainda em 2020, o antigo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) havia criado um site para renovação online, que deixou de funcionar após a extinção da entidade. Em 24 de novembro de 2023, veio mais uma prorrogação do decreto. A justificativa mudou: além da pandemia, acrescentou-se a necessidade de “acautelar a transição de competências administrativas no âmbito da reestruturação do sistema português de controlo de fronteiras”, que levou à criação da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA).

Na época, o SEF havia sido substituído pela AIMA há menos de um mês, e o processo de renovação já começava a apresentar confusões. O serviço, compartilhado com o Instituto dos Registos e Notariado (IRN), mostrou-se ineficaz ao longo do tempo. Outro fator determinante foi a mudança de governo: a saída do Partido Socialista (PS) deu lugar ao atual executivo do Partido Social Democrata (PSD). Essa última renovação do Governo de António Costa teve validade até 30 de junho de 2024.

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Com a criação da AIMA e a dificuldade crescente em renovar documentos, o decreto-lei tornou-se ainda mais presente na vida dos imigrantes. O número de títulos de residência vencidos só aumentou, chegando a 374 mil, segundo dados do Governo divulgados este ano.

Em março de 2024, a situação agravou-se: todos os mais de 100 mil imigrantes com títulos de residência da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) perderam a validade, sem possibilidade de renovação, em meio a um período de transição de Governo. Em janeiro, havia sido feita a promessa de renovação, que não se concretizou naquela data - sendo concretizada somente agora, com as renovações que começaram em fevereiro.

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Ao longo dos anos, o DN e o DN Brasil receberam incontáveis relatos de que o decretolei simplesmente não era reconhecido — seja na rede pública e privada de saúde, em empresas, universidades ou pelo próprio governo — além de impedir viagens fora do território nacional. Muitos locais públicos alegavam não saber da existência do decreto. Foi somente no verão de 2024 que cartazes foram colados nas paredes de instituições públicas para avisar aos funcionários que os documentos deveriam ser aceitos.

Este foi problema foi reconhecido pela Provedoria de Justiça, que mais de uma vez alertou o Governo sobre os prejuízos causados aos imigrantes. No relatório divulgado deste ano, disse que os decretos foram "insuficientes".

No dia 28 de junho de 2024, foi publicada a primeira prorrogação pelo Governo de Luís Montenegro, estendendo o decreto por um ano. A justificativa incluía, primeiro, os efeitos da pandemia e, depois, a incapacidade de resposta dos serviços da AIMA, citando ainda o “crescente número de processos pendentes, que impactam negativamente a vida profissional e familiar dos titulares, bem como o acesso a serviços públicos”. Atrasos eram atribuídos ao “demorado e desordenado processo de extinção do SEF”. O objetivo era “garantir tempo suficiente para estabilizar o funcionamento dos serviços públicos em matéria de migrações, assegurando resposta atempada aos pedidos”.

Chegando a 30 de junho de 2025, veio mais uma prorrogação, a última, desta vez até 15 de outubro, para dar continuidade ao processo de renovação dos títulos de residência. Diferente das anteriores, esta versão não permitia a validade de vistos, por exemplo.

Sabendo que não seria possível renovar todos os títulos até essa data, o plano previa um novo documento: um comprovante, com validade de 180 dias, indicando que o imigrante solicitou a renovação e está aguardando o cartão. Porém, como o DN Brasil revelou em reportagem publicada na terça-feira, 14 de outubro, os dois sistemas de renovação ainda apresentavam erros, e muitos imigrantes não conseguiram emitir esse comprovante.

Em resposta ao jornal sobe o tema, o Ministério da Presidência afirmou que “a Estrutura de Missão está atenta a todas as situações e preparada para responder a qualquer eventualidade, garantindo apoio e continuidade dos serviços prestados”. Assim, encerra-se uma era e inicia-se outra, com um prazo de validade temporário de 180 dias até a chegada do cartão de residência.

amanda.lima@dn.pt

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