Maria João, Mónica e Nanda: as caras da De Além Mar.
Maria João, Mónica e Nanda: as caras da De Além Mar.Reinaldo Rodrigues

De Além Mar: de Angola a Bahia, a trajetória de uma empadaria com sotaque múltiplo em Lisboa

Duas irmãs angolanas baianas e uma gaúcha soteropolitana comandam a casa que começou de uma forma e se consolidou de outra na região de Campo de Ourique.
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Quem passa pelo primeiro número da Rua Tomás da Anunciação, em Campo de Ourique, Lisboa, se depara com um menu que envolve alguns dos ingredientes mais tradicionais da culinária brasileira: “Fazemos nosso próprio catupiry, nossa própria carne seca. E se desse para fazer o palmito a gente fazia também”, diz ao DN Brasil Mónica Morais, enquanto prepara a massa de empadas que em breve vão à vitrine e cobrem o recheio artesanal feito com carinho.

Por muito tempo, no entanto, o restaurante em questão, a De Além Mar, não era a empadaria que é hoje. Aberta por Mónica e sua irmã Maria João, em 2022, o restaurante chegou a Lisboa com uma proposta parecida com a do negócio que ambas geriram por mais de uma década em Salvador (BA): um encontro entre os doces de Brasil e Portugal. Quis o destino que por aqui tivessem uma virada de chave no negócio, que hoje é famoso mesmo pelas empadas.

Nascidas em Angola e descendentes de portugueses, as duas imrãs se mudaram ainda jovens para a Bahia - mudança precoce que se nota no sotaque e no jeito acolhedor tipicamente soteropolitano. Na capital baiana, a De Além Mar apesar de ter variedade de opções de produtos funcionava mais como uma casa voltada para a culinária portuguesa, especialmente nos doces.

“O pastel de nata era o melhor que o de Belém”, garante Nanda Monteiro, antiga cliente dos tempos de Salvador e atualmente parceira das irmãs no dia a dia da unidade lisboeta. Gaúcha de Três de Maio, Nanda trocou também cedo chegou a Salvador. Morou alguns anos em Dublin, voltou a capital baiana, mas o gosto pela Europa e pela comida de Maria João e Mónica ficou.

O trio da De Além Mar.
O trio da De Além Mar.Reinaldo Rodrigues

Quando as irmãs anunciaram no Instagram que viriam para Lisboa e buscavam uma sócia, foi o padrasto de Nanda - espanhol, também cliente fiel do restaurante ainda em Salvador - quem deu o empurrão. “Eu já queria voltar a morar na Europa. Ele viu a postagem e disse: ‘Tá aí a oportunidade’.” Pouco tempo depois, em 2023, estava em Lisboa ao lado das duas, agora do outro lado do balcão.

A escolha de abrir um negócio em Lisboa sempre esteve no horizonte das irmãs. “Nossa cultura é muito portuguesa”, resume Maria João. Antes mesmo de se mudar, ela já tinha morado no país duas décadas atrás. O negócio em Salvador ia bem, mas em determinado momento veio a decisão: ou mudavam naquele momento, ou ficaria difícil deixar tudo para trás. Foi aí que decidriam vender a empresa, mas mantiveram a marca — hoje sob nova gestão - e embarcaram para Portugal.

Por aqui, encontrar o ponto certo não foi simples. Foram seis meses de busca, ligações e visitas a imóveis, até encontrar o espaço atual, que antes funcionava como um pequeno café gerido por um casal carioca. O lugar estava longe de ser ideal, mas passou por reformas e hoje exibe um ambiente cuidado e acolhedor que virou marca da casa: "Foi preciso um certo investimento", diz Mónica.

Com a tal proposta inicial de trabalhar com doces que misturassem Brasil e Portugal, o negócio demorou a decolar por causa de um agente fundamental para a confecção dos produtos: o açúcar. “Os portugueses não estão mais comendo doces como antigamente, lembro de vir aqui outras vezes e era um povo muito mais chegado nisso. Mas quando a gente abriu o que não faltava era gente falando que na nossa montra só tinha bomba calórica”, lembra Mónica.

Palmito, carne seca, catupiry, calabresa, goiabada...
Palmito, carne seca, catupiry, calabresa, goiabada...Reinaldo Rodrigues

Eis que um dia, para equilibrar a balança entre doces e salgados, Mónica Maria João e Nanda decidiram vender também empadas, no início só de frango e comprada fora do restaurante. E não é que foi um sucesso? Embarcando na prosperidade do quitute, começaram a fazer as empadas caseiras e, a partir daí, virou festa, especialmente com a entrada de recheios típicos da Bahia nos carros-chefes da, hoje empadaria.

Uma empadaria que ainda guarda lugar para doces

Mesmo que o foco sejam os salgados, o cardápio atual mantém alguns doces brasileiros, como quindim, bolos variados e criações sazonais. "Só não me venha com morango do amor e bolo marmorizado", avisa Nanda, que no dia da visita do DN Brasil ofereceu a este repórter um bolo branco com brigadeiro de lima e limão, compota artesanal de frutos vermelhos e coberto por chantilly.

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Já as protagonistas nos salgados variam entre as versões brasileiras, como frango com catupiry, carne seca com banana da terra - especialíssima -, camarão, palmito, entre outras. Outro carro-chefe é o pão-delícia, também recheado com catupiry. "É o pão de queijo baiano", diz Maria João. Há também espaço para as empadas portuguesas, com bacalhau cremoso e, quem diria, até de alheira!

O pão delícia faz jus ao nome.
O pão delícia faz jus ao nome.Reinaldo Rodrigues

Como dito, a zona que acolhe a empadaria é o Campo de Ourique, bairro tradicional de Lisboa, que é mais conhecido pelo comércio de proximidade do que pelo fluxo turístico. Para a De Além Mar, isso significa apostar nos moradores e em clientes que se deslocam especialmente para comprar ali. “O brasileiro tem muito esse costume de sair para procurar algo que gosta. Já o português, quando gosta, é fiel: continua comprando a mesma empada sempre”, afirma Nanda.

A adaptação não foi apenas gastronômica. As três destacam diferenças de consumo, preços e até de relação com a comida. “O português tradicional encara a refeição como necessidade, não como prazer”, opina Maria João, indicando que é mais difícil o público local se interessar por coisas novas - embora as três entendam que a imigração no continente como um todo tem mudado a cabeça dos europeus no que toca a comida.

Apesar das saudades em Salvador, a vida em Lisboa, onde hoje encontra-se praticamente toda a família das irmãs, trouxe ganhos na qualidade de vida: “Aqui podemos fechar aos domingos e até tirar férias em agosto, coisa impensável quando trabalhávamos de domingo a domingo no Brasil”, relembra Mónica.

As estrelas e a fachada do café em Campo de Ourique.
As estrelas e a fachada do café em Campo de Ourique.Reinaldo Rodrigues

Com produção diária e vendas que podem chegar a 150 empadas num bom dia , a De Além Mar hoje se consolida no bairro. O Instagram da casa - que recomeçou do zero, no Brasil já reuniam dezenas de milhares de seguidores - ajuda na divulgação, mas o boca a boca ainda é o principal motor. “Entre os portugueses, funciona muito mais que a rede social”, admite Nanda, que segue insistindo nas postagens e na comunicação visual, como uma boa publicitária com formação na área que é.

No balcão, o movimento se divide entre clientes habituais, brasileiros que matam saudade de casa e curiosos que descobrem o endereço por indicação. Entre empadas e histórias, a conversa corre fácil - reflexo de uma trajetória que mistura Angola, Portugal, Bahia e o Rio Grande do Sul, recheada com ingredientes que conectam todas essas regiões e países.

nuno.tibirica@dn.pt

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