Crônica. Expressões nossas de cada dia
Texto: Cristina Fontenele*
A língua de um povo é uma estrutura viva, diversa e exprime a multiculturalidade de uma região. Intercambiar expressões idiomáticas atravessa o caminho do imigrante que busca se adaptar, pertencer e também ampliar seu repertório de mundo. Nesse sentido, as últimas semanas têm sido momentos de descoberta, espanto e risos.
Estava no aniversário de um amigo português quando os convidados foram convocados para um quiz sobre expressões portuguesas e brasileiras. Deveríamos desvendar os significados e procurar correlatos. Já aí, pudemos compartilhar impressões que ultrapassam nossos avós.
Aprendi que “sete cães a um osso” significa algo muito disputado, que “nem o pai morre, nem a gente almoça” é usado para ocasiões de indecisão, talvez equiparado com o que dizemos no Brasil ficar nesse “chove-não-molha”, aquela situação que não se define, quase um ficar “em águas de bacalhau”, não dar em nada. “Meter a pata na poça” seria o nosso “pisar na bola”, cometer um erro ou ser inconveniente. Pude ensinar aos presentes o que é “rodar a baiana”, mas não mencionei que no Ceará o termo é mais conhecido como “botar boneco”, armar uma grande confusão.
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Entrou no desafio o “são muitos anos a virar frangos”, um dito que denota acumular bastante experiência em algo e que poderíamos igualar a ser “macaco velho”, alguém perito em determinado assunto. Falou-se ainda em “do tempo da Maria Cachucha”, para nós, brasileiros, o correspondente a “do tempo do Bumba” ou do “tempo do Ronca”, para se referir a coisa ou a um período muito antigo.
A investigação continuou por outros encontros sociais. Conversando com uma colega portuguesa, professora bastante simpática, enquanto me explicava sobre um curso que havia feito, ela soltou: “Mas aquilo não era banha da cobra, nenhuma aldrabice”. Questionei o que cobra tinha a ver com a história e percebi que ela fazia menção ao que apelidamos de “conto do vigário” ou “vender gato por lebre”. Em suma, era um produto correto e lícito, nada de falcatrua.
Perguntei quais outras expressões a colega usava com frequência e me respondeu “meter o Rossio na Betesga”, “estar com os azeites” e “diz o roto ao nu”. Tentei traduzir e confirmei que essa última é o nosso “sujo falando do mal lavado”, quando quem critica não tem moral para apontar a falha do outro, uma vez que a própria pessoa não pratica o que diz; “estar com os azeites” é alguém de mau humor, talvez seja o correspondente ao “estar com cara de bicho”, muito irritado. Já “meter o Rossio na Betesga”, inédito para mim, significa querer meter muita coisa (área ampla como o Rossio) em pouco espaço (Betesga, uma das mais antigas e menores ruas de Lisboa).
Segui me surpreendendo. Estou participando de um curso sobre Histórias Sonoras Não-Ficcionais e venho me divertindo - primeiro pela professora portuguesa, uma jornalista muito perspicaz e bem-disposta (como se nomeia por aqui os bem-humorados); segundo, pela turma agradável e de convivência respeitosa entre brasileiros e portugueses; terceiro, por aprender mais algumas expressões que ainda não tinha ouvido.
À certa altura das aulas, um dos participantes comentou o caso antológico de um repórter que estava numa transmissão ao vivo e foi cortejado pela entrevistada. A professora relembrou o episódio e brincou: “Então, estás-te a fazer ao piso ou o quê?”. Pausa na conversa, olhei para ela e disse: “Como assim?”. Prontamente, explicou que a expressão quer dizer flertar, “dar em cima de alguém”, como falamos no Brasil. Achei pitoresco, porque imaginei que seria alguém se jogando literalmente ao chão.
E tratando de literalidades, lembro-me das primeiras vezes que me disseram para “deitar fora” alguma coisa. De início, sempre imaginei a cena - alguém indo para fora do recinto e se deitando no meio da rua. Acredito que fantasia semelhante ocorra quando menciono o análogo cearense - “rebolar no mato”. Expressão que costuma arrancar estranheza e sorrisos.
Voltando ao ao curso, conheci mais três expressões interessantes: “Não é por aí que o gato vai às filhoses”, sendo filhoses um doce típico de Natal, isto para justificar que não há perigo, não é preciso se preocupar, porque as filhoses (ou o que isto represente) estão a salvo. A outra expressão foi “até ao lavar dos cestos é vindima”, ou seja, temos que esperar para ver o que vai acontecer, pois “tem é chão” (como diríamos no cearês) para os processos terminarem. A frase me trouxe à memória uma experiência de vindima turística que realizei numa vinícola, no Douro. Foram algumas horinhas a colher e a pisar uvas, mas já compreendendo ali o trabalho árduo e as várias etapas envolvidas até o produto final.
Por último, um colega do curso falou: “Pode dar fogo à peça”. Olhei para ele que, ao ler minha cara, explicou com outro termo: “Quer dizer despacha-te.”. Em tradução militar equivalente seria o nosso “manda bala” ou, na forma mais musical, “aperta o play”.
Também troquei expressões com a amiga equatoriana com quem dividi morada por alguns anos. A vida imigrante traz essa oportunidade cultural. Vivemos horas engraçadas buscando transportar significados e contextos entre nossos países. Enquanto eu dizia pensar “na morte da bezerra”, para explicar que minha mente estava longe, a divagar, ela comparava com “pensar en la inmortalidad del cangrejo” (pensar na imortalidade do caranguejo) - quando uma pessoa fica ensimesmada e distraída.
Ao ouvir músicas de “sofrência”, aliás ela que me ensinou a gostar mais do gênero sertanejo, eu comentava que aquilo era canção para “dor de cotovelo”. A amiga ria a revelar que no seu país estaríamos com “la mano en la pena” (a mão na tristeza), um jeito lírico de retratar as dores de amor.
Certo dia comentei que alguém estava qual “siri na lata”, muito irritado, raivoso, ao que minha amiga pesquisou no seu arcabouço linguístico e logo completou: “Ahh, como diablo en botella” (como diabo na garrafa). Achei graça o siri e o diabo se solidarizarem em seus recipientes. Veio à memória um souvenir típico vendido no Nordeste - um caranguejo ou um caju dentro de uma garrafa com aguardente.
E o aprendizado não para por aí. Ser imigrante é ter os ouvidos atentos para captar outros olhares. As expressões idiomáticas carregam memórias, raízes históricas, algumas vezes reproduzem interpretações enviesadas devido às crenças de uma época. Podem tornar-se inclusive inadequadas sob perspectivas mais maduras. Mas são também uma espécie de guia da identidade cultural de cada povo, e uma forma de contar a vida por metáforas, alegorias, hipérboles, figuras de linguagem que poetizam o cotidiano.
*Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.