O fado foi declarado Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, em 2011, tamanha a sua importância enquanto tradição e expressão da identidade da cultura do país.
O fado foi declarado Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, em 2011, tamanha a sua importância enquanto tradição e expressão da identidade da cultura do país.Foto: Rita Chantre / Global Imagens

Crônica. Silêncio, que se vai cantar o fado

"Enquanto cantava, a fadista, muito querida e simpática, incentivou as vozes do grupo e, quando se aproximou da nossa mesa, foi enfática: Adoro brasileiros!”.
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Texto: Cristina Fontenele*

Mostrar o fado para brasileiros é uma alegria e uma forma de partilhar um pouco da cultura que também me habita. Às visitas que recebo, sempre sugiro apreciar um concerto de fado e me sinto orgulhosa quando posso promover primeiros encontros. 

Assisti pela primeira vez a uma apresentação de fado em 1998, quando conheci Portugal. Era ainda muito jovem e só percebia que um jantar com música ao vivo fazia parte da programação. Até hoje lembro das postas generosas de bacalhau boiando em azeite, e de um palco com músicos e duas artistas trajando xales a se revezarem em cantos viscerais. 

Passados mais de 25 anos daquela excursão, sigo acreditando que imergir na cultura de outro país é item fundamental de um roteiro turístico e também da vida imigrante. A música, assim como a culinária, reflete o pensar e sentir de um povo. O fado foi declarado Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, em 2011, tamanha a sua importância enquanto tradição e expressão da identidade da cultura do país. 

Já morando em Lisboa, venho conhecendo outros fadistas, seus estilos, repertórios, formas de interpretação e entrega à cena. São muitos os eventos e casas do gênero. A temporada de fado no Castelo de São Jorge, por exemplo, promove uma atmosfera única e encantadora. Cada vez mais me deslumbro com as possibilidades dessa arte. Outro dia, li sobre uma combinação do canto com música eletrônica. O fado segue vivo a interagir com as novas gerações.

Em junho deste ano, levei um grupo de escritoras brasileiras para um jantar com música. “Silêncio, que se vai cantar o fado”, anunciou o gerente da casa. A partir daí, já entramos em modo contemplação. Uma das escritoras teve naquela noite o seu primeiro encontro com o fado e considerou o momento arrebatador, como se o mundo parasse por instantes para a alma escutar. 

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“A primeira vez que ouvi o fado, algo em mim silenciou. Era como se uma saudade antiga, que eu nem sabia que carregava, ganhasse voz. A melodia atravessou o tempo e a pele, tocando fundo, num lugar onde as palavras não alcançam.”, descreveu a amiga que traduz a vida em poesia.

O fado foi declarado Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, em 2011, tamanha a sua importância enquanto tradição e expressão da identidade da cultura do país.
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Em uma das canções, essa amiga escritora até cantou baixinho junto com o entoar da fadista, pois conhecia a versão brasileira interpretada por Nelson Gonçalves. A música foi eternizada em Portugal por Amália Rodrigues, com letra de Artur Ribeiro, escrita em 1953.

“De quem eu gosto nem às paredes confesso
E até aposto que não gosto de ninguém
Podes sorrir, Podes mentir, podes chorar também
De quem eu gosto, nem às paredes confesso”

Enquanto cantava, a fadista, muito querida e simpática, incentivou as vozes do grupo e, quando se aproximou da nossa mesa, foi enfática: “Adoro brasileiros!”. Aproveitou ainda os bons ânimos para nos aconselhar: “A vida é feita para ser vivida com calma. Gozem a vida com calma, meus queridos.”, repetiu.

Outra amiga, do Rio de Janeiro, mas moradora de Fortaleza, também conferiu um show de fado pela primeira vez comigo, em Portugal, há dois anos. Ela, que é neta de portugueses, já conhecia o gênero pelos comentários das tias, pelas propagandas de turismo e programas de televisão. Inclusive, ainda viu uma apresentação da Amália Rodrigues na tela. Mas o fado ao vivo, só em Lisboa. 

“É emocionante, porque você vê a forma como elas cantam o sentimento. Geralmente, são músicas que falam de amor - amor por uma pessoa, pela terra ou por uma época. Uma vivência que não se tem mais. Sinto, na maioria das vezes, uma certa tristeza que eles querem expressar”, comentou a amiga.

Na sua análise, ela destacou também que, por muitas apresentações serem em pequenos restaurantes e não incluírem uma grande produção, sentiu quase como se fosse um ambiente caseiro no qual a fadista nos chama para contar algo, para ter uma conversa íntima, meio em desabafo.

É interessante o que cada um leva consigo após uma noite de fado. Alguns se surpreendem com a saudade exacerbada nas letras, ou com a projeção da voz dos artistas. Outros deixam a emoção lagrimar. Quando estamos em plateia, observo os rostos e expressões, tanto dos brasileiros como de outras nacionalidades. Cada cultura reage mais ou menos efusivamente. 

Após as despedidas, desejo sempre que cada pessoa leve para o seu país, além dos bons momentos vividos, a lembrança de um povo que exclama amores e desamores com a mesma pungência, como a segurar o coração na mão. 

É como versa Mariza, em “Melhor de mim”:

“É a vida que segue e não espera pela gente
Cada passo que dermos em frente
Caminhando sem medo de errar
Creio que a noite sempre se tornará dia
E o brilho que o sol irradia
Há-de sempre me iluminar”

*Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
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