Equipe treina na região de Roma-Areeiro, em Lisboa.
Equipe treina na região de Roma-Areeiro, em Lisboa.PAULO SPRANGER

Pé de Moleca: imigrantes criam equipe de futebol feminino com atletas das cinco regiões do Brasil

Time fundado em Lisboa reúne jogadoras de nove diferentes estados no Brasil. Nos campos portugueses, elas driblam não só adversários, mas também o machismo e a xenofobia.
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Nove estados, 13 cidades, cinco regiões do Brasil. Essas são as origens de 16 das 19 atletas que atuam no Pé de Moleca, um recém-criado clube de futsal e futebol de 7 feminino fundado por imigrantes brasileiras em Lisboa. “Conheci gente de lugares que nunca tinha conhecido quando morava no Brasil”, conta ao DN Brasil a carioca Tatiana Pinheiro, 35, capitã da equipe. 

Iniciado de forma despretensiosa por amigas que queriam jogar a tradicional “pelada” nas noites de sexta-feira, o time passou a ter outro estatuto no dia 1o de setembro de 2023, quando Tatiana e outras atletas resolveram que queriam competir. “A gente jogava muito na desportiva e sempre fazíamos um convívio no final, tomando aquela cervejinha de sexta-feira e fomos nos entrosando dentro e fora de campo, a coisa crescendo, evoluindo… até que decidimos que queríamos ir mais adiante: naquele mesmo ano já participamos do nosso primeiro torneio”, relembra a capitã do time que tem no nome uma referência a identidade da equipe: bola no pé sem esquecer de onde vieram (o pé de moleque é um dos doces mais tradicionais do Brasil).

Formado maioritariamente por imigrantes - outras duas atletas são de Cabo Verde e uma de Portugal - o Pé de Moleca estreou de forma oficial nos gramados (ou relvados) portugueses dois meses após a criação. Depois de participar de outros cinco torneios desde a fundação, o clube conseguiu erguer o primeiro troféu num dia simbólico: foi campeão do torneio do Odivelas Sport Club, em pleno Dia da Mulher, no 8 de março.

“Foi surreal e, literalmente, para lavar a alma: foi um dia que simplesmente não parou de chover, uma tempestade, teve até granizo”, recorda Tati. “Foi bom para esconder o choro”, diz a alentejana Tina Rodrigues, 50, atleta mais experiente e única portuguesa do Pé de Moleca e orgulhosa participante do coletivo desde os primórdios da organização. 

Tina começou participando dos convívios do Pé de Moleca e agora é uma das principais atletas que treinam no time. A comissão técnica é formada por Igor Novello e Thalis Mendes, que realizam treinos com as atletas duas vezes por mês no campo do Grupo Dramático Ramiro José, na região de Roma-Areeiro. “Jogo com essa brasileirada toda”, brinca a portuguesa. “Mas não só. A gente faz eventos de aniversário, Ano Novo, Natal, e mesmo fim de semana, quando estamos de bobeira, vamos passear, ir para ali e para aqui. Virou mesmo uma família”, diz.

Treino do Pé de Moleca.
Treino do Pé de Moleca.PAULO SPRANGER.

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Para a alentejana, o crescimento do futebol feminino em Portugal nos últimos anos é flagrante, tendo as brasileiras um papel importante na consolidação da modalidade no país. De acordo com relatório do Portugal Football Observatory, da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), o número de atletas federadas no país aumentou em 132% entre 2013 e 2023.

Entre novos clubes criados, o crescimento é ainda mais impressionante. Cerca de uma década atrás, eram 294 equipes registradas, distribuidas por 188 clubes diferentes. De acordo com o mesmo relatório, o número aumentou para 1222 equipes de futebol feminino ao redor do país, distribuidos em 374 clubes.

Na Área Metropolitana de Lisboa (AML), a tendência se traduz na criação de novos clubes de futebol amador. "Favos de Mel, Relâmpago, Malta, Comó’ Vinho, Lisbon Casual Ladies... são vários clubes recentes ou novas coletividades focadas no futebol feminino, coisa de cinco anos para cá. A gente nota essa mudança mesmo, eu era acostumada a jogar no Brasil, mas quando cheguei ainda era algo muito embrionário o futebol feminino em Portugal", relembra Tati, em Lisboa há mais de dez anos.

A mineira Bárbara Alves, 27, é outra das participantes do Pé de Moleca. Praticante de futebol na época da escola e de capoeira por oito anos, ela conta ter tido no clube uma ferramenta de integração que ainda não tinha experimentado em sua vida como imigrante. “Vim para estudar e trabalhar, meu pai já morava aqui há muitos anos, mas minha vida inteira estava no Brasil, amigos, rotina, era difícil de se encaixar num novo meio. Vim experimentar no convívio de sexta-feira e acabei ficando. Antes me sentia extremamente sozinha, mas aqui no time todo mundo que chega é super bem acolhida, e isso aconteceu comigo”, diz Bárbara com alegria.

“Tinham que ser brasileiras”

Se lutar por mais espaço e reconhecimento é uma batalha de todas as atletas do futebol feminino em Portugal, as jogadoras imigrantes do Pé de Moleca têm essa batalha ainda mais acentuada. “Sempre rola essa discriminação”, diz Tatiana. “E vem de jogadoras, organização, arbitragem, até de técnicas rivais. Outro dia uma treinadora falou para a gente: ‘Nós somos profissionais, não jogamos esse futebolzinho de vocês’, como se nós, brasileiras, não fôssemos organizadas. O jeito é responder isso jogando, dentro de campo, que é o que temos feito até agora”, diz a capitã.

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Débora relembra outro episódio de xenofobia: “Teve um jogo que estava na torcida, não consegui me inscrever para o torneio por questões de trabalho e acabei indo para dar o suporte para as meninas. Estava na arquibancada dando meu apoio, torcendo, e pediram para parar o jogo porque eu estava gritando demais. Fala serio? É o meu time, é futebol, tem torcida. Até que ouço um pessoal da torcida do outro time dizendo ‘tinha que ser brasileira’. Basicamente me proibiram de torcer: já em dois campeonatos quiseram nos expulsar por causa da torcida”, conta. 

Sem arredar o pé para o ódio, as atletas do Pé de Moleca seguem firme no objetivo de criar um time de futebol feminino formado maioritariamente por atletas imigrantes. Para os próximos tempos, o principal objetivo é arranjar patrocinadores para o clube. “O que queremos, a curto prazo, é tirar o custo das meninas. Infelizmente, até agora a gente ainda tem que pagar para jogar, custo da quadra, deslocações, materiais. Portanto angariar algum parceiro é o que mais temos procurado no momento”, comenta Igor Novello, o ‘Mister’, do Pé de Moleca. 

Igor Novello, técnico da equipe.
Igor Novello, técnico da equipe.PAULO SPRANGER

Fora de campo, a identidade do projeto vai ganhando forma. As participantes do que gostam de chamar mais de coletivo do que de clube desenharam o equipamento do time - rosa e preto - e em breve terão mais materiais na “lojinha” do Pé de Moleca. “Já temos camisa e canecas, logo logo teremos cachecóis e outros produtos também. Dentro do coletivo, cada um é responsável por uma área, temos nos organizado assim para a coisa ir para a frente”, diz Tatiana. 

Ainda sem o nome registrado enquanto associação esportiva, as atletas e comissão técnica do Pé de Moleca tem na formalização do time uma das próximas tarefas para o futuro. A longo prazo, é a ideia de que o projeto se consolide como uma referência poliesportiva de atletas mulheres em Lisboa. Para as jogadoras, não é só esporte, e sim uma ferramenta social para a vida das imigrantes em Portugal. 

“Batemos muito na tecla da saúde mental. Depressão, ansiedade, são infelizmente problemas muito comuns que presenciamos hoje e o que ouço é que muita gente consegue lutar contra esses males nesse projeto que a gente está construindo. Muita gente se recupera e tem no esporte um escape e acho isso importantíssimo. Nosso grupo é muito aberto e dinâmico e queremos seguir desse jeito”, finaliza Tatiana. 

nuno.tibirica@dn.pt

Este texto está na edição impressa do Diário de Notícias desta segunda-feira, 07 de abril de 2025.

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