Opinião. Pantanal em perigo
Texto Sandro Menezes Silva*
O Pantanal, a maior planície inundável interior contínua do mundo, ocupa a porção central do continente sul-americano, com localização aproximada entre 13° e 22° de latitude Sul, e 53° e 61° de longitude Oeste. Integra a bacia hidrográfica do Alto Paraguai (BHAP), que tem cerca de 600 mil km2, quase 60% deles no Brasil, além de trechos na Bolívia e no Paraguai. Dos quase 360 mil km2 brasileiros, cerca de 140 mil km2 constituem a planície pantaneira, que se estende pelos estados do Mato Grosso, que tem 35% dessa área, e Mato Grosso do Sul, com os 65% restantes. A planície pantaneira é rodeada por um conjunto de serras e chapadas (planaltos) com altitudes entre 400 e 600 metros acima do nível do leito do rio Paraguai, principal formador do Pantanal, cujo nível-base está entre 80 e 130 m acima do nível do mar. Trata-se de uma região sazonalmente inundável e bastante diversa.
O Pantanal está situado entre regiões naturais importantes da América do Sul. A floresta tropical no Norte (Amazónia), Noroeste (floresta chiquitana) e Sudeste (Mata Atlântica), a savana tropical (Cerrado) a Leste e Nordeste, bem como o Chaco, no Sudoeste, tornam a região única em termos de biodiversidade. A sua fauna e a sua flora misturam elementos de todas essas ecorregiões, com populações saudáveis de algumas espécies que, em outras regiões da América do Sul, estão bastante ameaçadas.
A principal característica do Pantanal é o chamado “ciclo ou pulso de inundação”, caracterizado pela alternância anual entre estações chuvosa e seca, com padrões locais de inundação altamente variáveis. A estação chuvosa está concentrada entre novembro e março, com uma precipitação total que varia entre 1.200 e 1.300 milímetros por ano, com extremos que chegam próximos de 2.000 milímetros por ano. A precipitação é mais intensa nas partes altas do norte e nordeste da bacia hidrográfica. Durante a estação seca, cujo ápice geralmente ocorre em agosto, é bastante comum e frequente a ocorrência de fogo, sobretudo nos locais em que há maior acumulação de biomassa vegetal seca, como nas formações campestres e savânicas abertas.
Os efeitos do ciclo de inundação sobre as plantas e os animais são diversos. Vários estudos demonstram que a biota desenvolveu diferentes estratégias para viver em ambientes tão dinâmicos e, em alguns casos, condições extremas. Eventos ligados ao ciclo de inundação podem atuar como gatilhos de processos funcionais e/ou reprodutivos em plantas e animais. Há quem afirme que alterações nesse ciclo poderiam levar a mudanças imprevisíveis, com consequências tanto para a vida silvestre como para as populações humanas que vivem na região há muitas gerações.
A planície pantaneira mantém relações históricas e evolutivas com os planaltos envolventes, em termos de origem, formação e dinâmica ambiental, o que reforça a necessidade de entender a bacia hidrográfica como unidade de planeamento ambiental, visando ações de conservação da biodiversidade, de aproveitamento dos serviços ambientais e de adequação das práticas produtivas às condições ambientais. Além dos aspetos hidrológicos e de transporte de sedimentos, as conexões entre as porções planálticas e a planície pantaneira também são imprescindíveis para garantir o fluxo da fauna e da flora. Assim, ainda que o Pantanal mantenha mais de 80% de sua superfície em condições próximas às originais, encontra-se ameaçado por fatores que vêm de fora da planície inundável.
As práticas agrossilvopastoris na parte alta da bacia hidrográfica, feitas de forma ambientalmente inadequada, têm trazido impactos para o Pantanal há pelo menos 50 anos, com alterações nos regimes de descarga de água e sedimentos e, consequentemente, na dinâmica de inundação e no trajeto seguido pelos rios. O caso do Taquari ilustra como tais alterações se manifestam na planície: o rio já mudou o seu curso principal mais de uma vez durante esse período, deixando fazendas isoladas e áreas permanentemente inundadas, com impactos tanto na biodiversidade como na vida das populações pantaneiras.
Obras de infraestruturas, como a hidrovia do rio Paraguai, preveem, no projeto original, o derrocamento do leito e a retificação e a dragagem do canal principal de diversos trechos deste rio, o que pode alterar completamente a intrincada dinâmica de inundações que caracteriza o Pantanal. Somam-se a isso as dezenas de projetos de aproveitamento hidroelétrico dos rios que formam a bacia, que resultariam numa retenção de água no planalto e chegada cada vez menor de água à planície. A água que cai nos planaltos não chegará totalmente à planície, pois fica retida nos reservatórios hidroelétricos; e a água que chega vai passar mais rápido por ela, já que o rio Paraguai terá menos obstáculos (curvas, bancos de areia, regiões mais rasas) para a reter e produzir as inundações.
Todo este quadro, bastante preocupante, acentua-se frente aos eventos climáticos extremos decorrentes das alterações climáticas. No caso do Pantanal, elas podem refletir-se em períodos de secas prolongados, que facilitam a ocorrência de incêndios de grandes proporções, como se viu em 2020 e agora, novamente, em 2024. Os cientistas ainda estão a tentar entender os efeitos das alterações climáticas no bioma, mas uma coisa é certa: a fragilidade do Pantanal, sob o ponto de vista do seu funcionamento hidrológico, pode levar a um cenário irreversível, no qual a biodiversidade e os serviços ecossistémicos produzidos na região ficariam irremediavelmente comprometidos.
*Sandro Menezes Silva é biólogo e professor da Faculdade de Ciências Biológicas e Ambientais da Universidade Federal da Grande Dourados (MS), Brasil.