"A ordem desigual é instrumentalizada pelos operadores do caos, especialmente quem lucra e ganha em situações conflituosas".
"A ordem desigual é instrumentalizada pelos operadores do caos, especialmente quem lucra e ganha em situações conflituosas".Foto: Leonardo Negrão

Opinião. Os fatos não falam por si: imigração e os sentidos da verdade


"De um lado, um país que historicamente se pensa acolhedor; do outro, discursos que elegem os imigrantes como problema nacional. E aqui entramos na raiz da questão: a forma como a Europa (ainda) compreende a ideia de verdade".
Publicado a

Texto: Lucas Zanetti*

Enquanto os dados tentam convencer e só reagem, o afeto cria sentido e mobiliza. Ao não percebermos isso, a desinformação vence. A verdade é, também, a partilha dos afetos. Ninguém contesta, hoje em dia, que a desinformação seja um dos sintomas mais visíveis da era digital

Chamemos de fake news, meias verdades ou narrativas fabricadas — elas são parte estrutural do ecossistema informacional em que vivemos. Ainda assim, parece que continuamos a tratar o fenômeno como um desvio técnico, quase uma anomalia a ser resolvida com ferramentas de checagem e campanhas de literacia midiática. O problema, porém, é mais profundo — e mais desconfortável.

Em primeiro lugar, importa dizer o que poucos gostam de admitir: a desinformação não nasce do acaso nem da ignorância. É, frequentemente, planejada. É fruto de engenhos de comunicação bem articulados, com financiamento, objetivos políticos e operadores que, ironicamente, muitas vezes passaram pelas mesmas universidades que ainda defendem a neutralidade racional como vacina contra a mentira. A desinformação, portanto, é menos um erro do sistema e mais uma engrenagem do próprio sistema. Acima de tudo, financiada e profissionalizada.

Em segundo lugar, há um equívoco persistente em pensar que se combate desinformação somente com factos, estatísticas e racionalidade tecnocrática. Não se trata de negar a importância dos dados, mas de reconhecer que eles não são suficientes. A desinformação não opera no domínio da razão, mas sim no dos afetos.

O ressentimento, medo e incerteza convertem-se em raiva, a raiva em ódio, e esse ódio encontra nos imigrantes o seu bode expiatório perfeito. Afinal, quem melhor para ocupar o lugar da ameaça do que aquele que vem de fora, vive, se apresenta, fala diferente e ocupa um espaço visível? 

Portugal, que vive um momento delicado de tensão identitária, é exemplo disso. De um lado, um país que historicamente se pensa acolhedor; do outro, discursos que elegem os imigrantes como problema nacional. E aqui entramos na raiz da questão: a forma como a Europa (ainda) compreende a ideia de verdade.

Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!

A verdade, neste quadro, continua a ser entendida como aquilo que é objetivo, neutro, comprovável. Tudo o que escapa a essa definição — memória, narrativa, experiência vivida — é descartado como ruído ou crença e, obviamente, relegada ao outro, à alteridade. Como se apenas o que é dito em tom monocórdico, acadêmico e estatístico merecesse crédito de verdade e conhecimento. 

É a lógica do que Muniz Sodré chama de “monoteísmo da razão”: uma verdade única, higienizada, que exclui o corpo, a cultura e a sensibilidade. Ocorre que nunca houve verdade sem o valor da crença e com matrizes culturais e, na atual conjuntura de crise de paradigmas e pós-verdade (para usar um termo pretensioso), essa sim é uma verdade que deveria ser mais reconhecida. Fatos são irrefutáveis, verdades são narrativas.

A extrema-direita sabe disso mais do que ninguém. Explora as contradições, mobiliza a frustração e o ressentimento, distorce, aos gritos, os fatos e criam narrativas de ódio com capa de indignação e honestidade. Criam o clima de pânico moral, se aproveitando dos medos e das fragilidades. É por isso que, na era do engajamento digital, os perpetradores do caos parecem estar sempre em vantagem. A lógica das redes deixa pouco espaço para uma esfera pública racional.

Contra isso, Jacques Rancière propõe outra via: a ideia de partilha do sensível. Em vez de nos fixarmos em consensos fabricados, deveríamos estar atentos ao dissenso — à ruptura provocada por aqueles cuja voz não era sequer reconhecida como voz. A desinformação, nesse sentido, além de uma simples mentira, é a reafirmação de uma ordem sensível desigual, onde apenas certos corpos, discursos e vivências são legitimados como verdadeiros. A ordem desigual é instrumentalizada pelos operadores do caos, especialmente quem lucra e ganha em situações conflituosas.

E é aí que reside o ponto central: combater a desinformação implica disputar as formas de ver, ouvir e sentir o mundo. Não se resolve apenas com a correção de conteúdos, mas reconstruindo o espaço público como lugar onde outras verdades, sejam elas culturais, emocionais ou mesmo ancestrais possam existir. Não se trata de ceder à pós-verdade, mas de reconhecer que a verdade sempre foi, também, uma questão de poder.

Portugal não deixará de ser um país de imigração. A questão é: vai continuar a nomear os imigrantes como problema ou vai permitir que sejam narradores das suas próprias histórias? Vai insistir em ignorar os afectos como base do vínculo social ou vai reconhecer que os grandes consensos, inclusive os democráticos, sempre foram construídos também sobre o simbólico e o sensível? 

Desinformação não se combate apenas com vigilância digital e boas intenções académicas. Combate-se com escuta. Com dissenso. Com a coragem de admitir que a objectividade pura e racional, tal como a conhecemos, também foi, e continua a ser, uma ficção hegemônica.

*Lucas Zanetti é jornalista e Doutor em Comunicação pela Unesp (Universidade Estadual Paulista). Realiza pós-doutorado na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) com financiamento do CNPq. Investigador externo na Universidade do Minho.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
"A ordem desigual é instrumentalizada pelos operadores do caos, especialmente quem lucra e ganha em situações conflituosas".
Opinião. A força da mistura das vozes no grito do imigrante: num grito nos tornamos nação
"A ordem desigual é instrumentalizada pelos operadores do caos, especialmente quem lucra e ganha em situações conflituosas".
Opinião. Portugal precisa dos imigrantes, mas faz de tudo para expulsá-los daqui
Diário de Notícias
www.dn.pt