Opinião. O egoísmo necessário para imigrar
Texto: Luísa Cunha*
Recentemente, uma pergunta me pegou de surpresa: "Então tens tanto orgulho de ser brasileira, mas já paraste para pensar que não és somente isso mais? Depois de tantos anos aqui, não há nada que realmente queiras levar contigo de Portugal?"
Minha resposta veio na hora, sem hesitação: "Claro que há, meu ouro."
Rimos todos, e a conversa seguiu seu curso, mas aquela pergunta ficou martelando na minha cabeça a semana inteira.
A surpresa não foi pela pergunta em si, mas porque, naquele instante, me deparei com a minha própria hipocrisia. Sempre acreditei – e defendi em todas as mesas de bar em que me sentei – que conviver com o outro, seja ele da nossa cultura ou de uma completamente diferente, é o único caminho para nos tornarmos mais humanos. Que, como cidadãos do mundo, somos esponjas da comunidade em que nos inserimos, agregando a quem somos um pouquinho de cada lugar por onde passamos. E que essa convivência, seja voluntária ou forçada (como acontece quando imigramos), é necessária não só para encontrarmos o nosso lugar, mas para aprendermos a respeitar o espaço do outro – sem invadi-lo com palavras, atitudes ou egos.
Mas então por que, morando fora, de repente me pego como uma esponja enrijecida, agarrada a uma identidade brasileira como se fosse uma fé inabalável? Claro que tenho orgulho da minha nacionalidade – um orgulho saudável, deixo já registrado. Mas por que isso me impediria de admitir que há, sim, coisas que quero levar comigo dos jeitos portugueses? Será que as dores sofridas – e não foram poucas – me endureceram ao ponto de transformar minha cultura de nascença e o meu Brasil idealizado num forte, um escudo contra qualquer influência externa?
Ou talvez a necessidade de me afirmar brasileira no exterior seja uma forma de compensar o que senti perder ao imigrar? Afinal, admito, chegamos a esse território sem nossa espontaneidade e nossos círculos de amigos antigos. Ficamos perdidos – às vezes literalmente – sem nossa independência de andar por aí conhecendo qualquer rua, viela, mercado e "quem é fi de quem". Nossa personalidade extrovertida, reconhecida internacionalmente como essência da cultura brasileira, sofre um baita baque de realidade ao se deparar com uma cultura que, apesar de parecer próxima pela língua, está a mais de 7.000 km de distância.
Onde foi que deixei de ser esponja? Nosso jeito de abraçar o mundo, da porta do aeroporto para fora, se retrai e vira um prato exótico. Então, talvez tenha sido nessa tentativa de me proteger, de preservar o nosso modo expansivo de lidar com o novo, que acabei construindo um forte tão alto que, sem perceber, passei a ver o brasileiro como um ser culturalmente "superior", como se fôssemos melhores apenas porque nos integramos com mais facilidade – e o português do outro lado do muro como o oposto disso? Mas será que isso é verdade? Ou será que a forma como somos recebidos é simplesmente o reflexo natural de quem vive em um país com uma moeda, cultura, influências políticas e normativas sociais diferentes das nossas? Será que não existe o "jeitinho português" e será que nos cabe julgá-lo só por não ser igual ao nosso?
A questão é que, de cima da torre do nosso forte, corremos o risco de interpretar tudo ao redor como um ataque. E este texto é um desabafo de quem já anda cansada de viver nessa guerra interna, na constante vigilância dos olhares na rua e no mercado, de uma resposta curta no café, de um silêncio prolongado numa conversa... E SIM, devemos lutar contra a xenofobia e o preconceito. Mas será que, excluídos os casos óbvios de discriminação, também não precisamos aceitar o "jeitinho português" e engolir a hipocrisia de reclamarmos dos olhares de superioridade enquanto, talvez, estejamos fazendo o mesmo ao comparar as culturas brasileira e portuguesa e a forma como cada um lida com o novo?
Por fim, ainda que não seja somente o "jeitinho português", será que, acima de tudo isso, não precisamos aprender um certo grau de egoísmo para ter uma experiência mais feliz ao imigrar?
Vejam bem, não sugiro um egoísmo que nos feche para o outro ou nos coloque acima de ninguém. Afinal, temos de admitir que, para além do contagiante "pois", há muito do jeito português que apreciamos – a forma ordenada de ver o país, as regras sociais e "oficiais" impostas, e a sensação de ordem e segurança que é consequência disso, a educação e até mesmo a forma mais relaxada de encarar a rotina (porque, convenhamos, um almoço de duas horas em plena quarta-feira tem seu charme).
Sugiro um egoísmo que nos permita sermos os pratos exóticos extrovertidos do “menu português”, abrindo mão daquilo que não vale a pena carregar e ignorando as pessoas pequenas em forma de pedra no nosso caminho, sem permitir que elas se tornem mais um tijolo na muralha do nosso forte de proteção – ou de isolamento.
É o egoísmo de simplesmente dizer:
"Não gosta de brasileiros? Problema é teu, irmão."
"Virou o olho para o meu sotaque? Tá bom, qualquer coisa vai avisando."
"Veio me mandar embora do seu país? Se for chorar, manda áudio."
"Quer me excluir pelo meu jeitinho brasileiro? Pratos exóticos são mesmo só para exclusivos."
E seguir. Com a nossa. Vida.
Porque penso que a verdade é que não vamos mudar sozinhos a xenofobia. Seguiremos lutando, mas minha mãe sabiamente já dizia: “quando um não quer, dois não brigam”, e aqui, infelizmente, não há sequer uma cultura de reconhecê-la – muito menos de debatê-la. O Brasil, nesse sentido, está anos-luz à frente.
Então, talvez esteja tudo bem aceitarmos que a nossa integração não vai ser dada de bandeja só porque falamos a mesma língua. Talvez esteja tudo bem aceitarmos que não somos o gosto de todos os portugueses, sem deixar que isso nos tire nosso jeito expansivo, parte tão importante da nossa personalidade, e nos empurre de volta para o nosso forte. Talvez esteja tudo bem entender que os círculos de amizade e convivência aqui são fortes, às vezes impenetráveis, admitir que o "jeitinho português" é grande parte disso e sermos brasileiros mesmo, não desistindo deles, e não deixar que isso seja um motivo para o nosso isolamento.
Talvez já seja hora de tomarmos em nossas próprias mãos o destino da nossa experiência de imigração, sem nos deixarmos abalar pelos olhares infelizes daqueles portugueses fechados em suas próprias torres de superioridade. Que eles definhem à própria sorte.
Que sejamos egoístas para não abrirmos mão de nós mesmos por nada nem ninguém, sem desrespeitar o solo em que estamos, e que possamos fazer da nossa passagem por Portugal algo que realmente nos enriqueça – e enriqueça aqueles que quiserem partilhar dessa caminhada –, em vez de fazer da nossa presença aqui apenas mais uma batalha de resistência.
*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.