Opinião. Respeitável público, bem-vindos ao circo da imigração em Portugal
Texto: Luísa Cunha*
Louvo, verdadeiramente, os jornalistas que têm como função cobrir e repassar as notícias de Portugal. Eles são os grandes equilibristas do circo em que se transformou a temática da imigração no país. Hoje, abrir o noticiário é deparar-se com manchetes que evocam épocas de medo, desconfiança, tensão global e incerteza sobre o próprio caminho. E não é necessário ser imigrante para se sentir assombrado pelas dinâmicas mundiais, mas, estando fora do país de origem, essas sensações se multiplicam a cada olhar desconfiado cruzado na rua.
Esta semana, por exemplo, os imigrantes brasileiros em Portugal se viram nos noticiários “entre a cruz e a espada”, representadas pelas figuras da caneta de Marcelo Rebelo de Sousa, perante o acordo da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), e pelas passagens aéreas distribuídas por André Ventura. Sinceramente, aqueles que gritam diariamente contra a imigração precisam escolher: ou passam o dia a negar reconhecerem que a culpa de terem ainda mais imigrantes ilegais decorre da ineficiência e despreparo do governo português para lidar com a situação — o que faz com que milhares de nós ainda estejamos no território como ilegais, não por escolha própria, mas porque as agências responsáveis não suprem a demanda — ou então passam os dias a furtar bagagens em aeroportos. Não há tempo para tudo!
Brincadeiras e malas à parte, noticiar sobre imigração em um cenário tão polarizado tornou-se uma tarefa árdua. Hoje, não se pode mais entregar o dever da interpretação diretamente ao leitor. Tudo é motivo para “pôr o circo abaixo”: se o jornalista indicar a nacionalidade de alguém que cometeu um crime em Portugal e esse alguém for imigrante, é o mesmo que entregar a tocha aos palhaços da extrema-direita, que colocam todos no mesmo barco (ou voo). Por outro lado, se omitir a origem do criminoso, é acusado de conivência e corre o risco de ser jogado na jaula de feras — sem ao menos considerarem que a omissão pode ser feita para deixar o caso nas mãos das autoridades competentes. Mas, se por fim indicar relutantemente que o criminoso é português, os imigrantes também não deixam barato e rapidamente transformam a situação em picadeiro.
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Ora, respeitável público, precisamos parar e refletir. Nós somos, muitas vezes, a principal causa desse espetáculo desgostoso de assistir. Enquanto as generalizações forem os óculos de leitura que escolhemos, não haverá outra forma de noticiar acontecimentos em Portugal sem exigir dos jornalistas o minucioso trabalho de equilibrar-se na corda bamba. E, enquanto a generalização for o discurso que sustentamos, não haverá espaço para a integração.
O circo está montado, e não há como sair. Primeiro, porque nós, que imigramos para Portugal, queremos estar aqui e já fazemos mágica para lidar com as burocracias e dificuldades encontradas. Segundo, porque recusamos os bilhetes oferecidos por Ventura — afinal, não são de primeira classe! O mínimo que se espera para a população imigrante, que carrega o título de “galinha dos ovos de ouro” de Portugal, é um tratamento mais digno, em executiva, compatível com o que já contribuímos para este país.
Devemos, no entanto, reconhecer que não há inocentes na plateia. Nós, imigrantes, muitas vezes reclamamos das generalizações que sofremos, mas não hesitamos em dizer que todos os portugueses são xenófobos. Embora as experiências dolorosas nos marquem, prejudicando nossa adaptação e dificultando a chance de viver Portugal em sua essência, precisamos assumir a parcela de responsabilidade que nos cabe nesse distanciamento.
Por outro lado, os adeptos da direita portuguesa, com seus discursos supremacistas e generalistas, precisam entender que alimentam a tensão social e colocam milhões de imigrantes na mira de uma perseguição ideológica. Qual a lógica em apoiar um discurso que generaliza todos os imigrantes, enquanto se retira o próprio amigo ou conhecido imigrante das consequências desse mesmo discurso? Já me disseram muitas vezes que devo me preocupar apenas com a opinião daqueles que me conhecem. Mas será que os que foram xenófobos sequer fizeram questão de passar do “Olá”? Não — ao primeiro sinal de um sotaque diferente, muitos já emitem o bilhete de “volta ao seu país”.
Como imigrante, devo concordar com André Ventura em um único ponto: não é agradável viver sendo perseguido, com alguém respirando em nossa nuca, fiscalizando e reprovando cada ação — ainda que, no caso dele, tal vigilância seja mais do que justificada.
Em tempos de um mundo cada vez mais “desglobalizado”, Portugal, pioneiro em tantas áreas, poderia colocar uma caravana diferente pela Europa: rumar a políticas de imigração e discursos sociais mais inclusivos, mostrando ao mundo que sua identidade, verdadeiramente desbravadora, também é acolhedora. Ou será que os portugueses perderam a confiança no próprio valor e decidiram render-se à onda de segregação que se alastra pelo mundo? Portugal é um país de muitas “Marias”, mas nunca imaginei que seria daquela que “vai com as outras”.
*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.