Opinião. Guiana brasileira: o meme é uma arma
Foto: X (antigo Twitter)

Opinião. Guiana brasileira: o meme é uma arma

"No fim, a Guiana Brasileira é só isso: um meme, uma sátira, uma dessas grandes piadas que escondem verdades incômodas. E como toda boa piada da escola, ela não pede licença"
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Texto: Diogo Batalha*

Há uma coisa nos portugueses que me incomoda e com a qual acho que nunca irei me acostumar. E me desculpe se estou sendo generalizador. Mas parece-me que o único momento em que o povo português se permite ser feliz é nos Santos Populares. Fora isto, estar de bem com a vida é quase um crime. E acho que, de certa forma, por causa deste traço cultural, os portugueses acabam sendo sabotados em sua alegria. É como se saber sorrir de si mesmo e dos seus erros fosse algo errado. Fernando Pessoa já tinha avisado sobre isso no Poema em Linha Reta, é verdade. Mas ainda me incomoda.

Ariano Suassuna pôs no colo do Molière o pensamento que dizia que “nenhuma tirania resiste a uma gargalhada que dê três voltas ao redor de si próprio”. O brasileiro, coitado, sofreu com muitos tiranos em sua história para saber que isto não é assim tão verdade. Mas aprendemos desde cedo que é melhor ser alegre que ser triste e que é preciso sorrir pra não chorar.

Ora, se o riso resolvesse tudo, o Brasil já teria se tornado uma Suécia ensolarada. Eu diria que é exatamente o oposto: o riso no Brasil é arma de sobrevivência à violência do dia a dia. A alegria do samba não nasceu como fruto das dificuldades da favela, mas como resistência a elas. O Carnaval, por exemplo, tem mais crítica social por metro quadrado de tule do que muito editorial por aí. A diferença é que a crítica vem com purpurina. E por isso passa ao lado de algumas pessoas. 

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Outro dia mesmo, o Brasil decidiu que Portugal virou colônia. Pelo menos no Google Maps dos memes. Assim nasceu a "Guiana Brasileira". Sem exército. Sem navio. Só com wi-fi e imaginação. Portugal virou meme. O que é, hoje, parece ser pior do que virar província ultramarina.

Esta coisa começou quando a jogadora de futebol Kika Nazareth foi contratada pelo Barcelona. O clube a anunciou com um inofensivo "Fala, galera!". Uma expressão tão comum quanto um “bom dia” num elevador. Mas bastou isto para alguns “patrícios patrióticos” tratarem o evento como se alguém tivesse cuspido no túmulo de Camões.  

Agora, vejam só: há pessoas em Portugal que se ofenderam porque um clube espanhol usou uma expressão do português do Brasil para falar de uma jogadora portuguesa. Agora, imaginem só como essas pessoas vão reagir quando souberem que, segundo a OCDE, 4 em cada 10 adultos em Portugal têm dificuldades de compreensão o que lêem. Talvez aí esteja o verdadeiro perigo à língua portuguesa. E não num ‘Fala, galera!’ nas redes sociais.

O brasileiro, naturalmente, respondeu como responde a tudo: com piada. Na grande quinta série que é o espírito nacional tupiniquim, Portugal rapidamente foi anexado ao nosso país. Surgiram mapas, bandeiras e tudo o que a criatividade pode oferecer num post no antigo Twitter (atual ex-rede social). 

O humor, como sabemos, precisa rir de alguém. E, neste caso, o jeitinho digital do brasileiro foi inverter a história. Portugal colonizou o Brasil por séculos. Agora, pelos telefones e códigos binários, o Brasil “revidou”. Não com canhão. Mas com piada. Não com espada. Mas com ironia. Uma independência feita à base do engajamento digital.

Alguns portugueses, insultados, começaram a tentar virar a mesa. Chamaram o Brasil de "Groenlândia Portuguesa" e "Texas do Sul". Coisas que não ofendem ninguém. Exceto, talvez, algum texano e os povos da Groenlândia. Mas é aí que mora a falsa simetria da coisa, porque quem colonizou e quem foi colonizado não jogam na mesma divisão histórica. 

A internet virou essa praça onde se vende pastel de opinião em busca de likes. E o brasileiro está lá, vendendo riso como resistência àqueles que acham que não falamos um português correto. Porque, no fundo, o que chamam de "colonização reversa" não passa de uma teoria da conspiração de quem não sabe rir de si próprio. Que dirá, rir com os outros.

No fim, a “Guiana Brasileira” é só isso: um meme, uma sátira, uma dessas grandes piadas que escondem verdades incômodas. E como toda boa piada da escola, ela não pede licença. Invade, senta e, se reclamar, vai ser chamado de “orelhudo” para sempre. Se hoje Portugal se incomoda com um “Fala, galera!”, talvez seja porque finalmente entendeu que a língua não tem dono. Ela tem donos. No plural. 

Se querem uma dica de quem teve orelhas grandes na escola, é esta: antes de se ofender, vá apreciar a obra do Ariano Suassuna. Vai perceber com o seu Movimento Armorial que o colonialismo não acaba com tratados oficiais. Acaba quando o colonizado começa a virar o autor da sua própria história. 

*Diogo Batalha é redator há quase duas décadas (e desde 2015 vive em Portugal). É aracajuano desde que nasceu e detesta que não saibam onde Aracaju fica no mapa. Pai de uma pequena portuguesa, tenta achar palavras para explicar até mesmo o que ainda não consegue compreender.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
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