"Me digam, qual música devemos entoar para que sejamos também ouvidos e acolhidos?"
"Me digam, qual música devemos entoar para que sejamos também ouvidos e acolhidos?"Paulo Resende / Unsplash

Opinião. Empatia seletiva

"Não há, neste mundo, sensação de maior imponência do que a de querer tanto integrar-se ao lugar em que vivemos, de todas as formas, e continuar sendo rejeitado"
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Texto: Luísa Cunha*

Estive nas últimas duas semanas processando um sentimento incômodo que me surgiu durante uma competição musical portuguesa. Não pelo fato de uma música tão bela e necessária ter sido abandonada ao longo da trajetória (canção "Quem Foi?" de Luca Argel), mas sim porque a música, igualmente linda, vencedora para representar Portugal na Eurovisão levou ao palco o mesmo sentimento, trata da mesma melancolia e da mesma saudade, mas numa voz portuguesa, narrando a experiência da imigração de um público português e essa experiência, esse manifesto, foi acolhido e abraçado com um carinho que me deu... não raiva, não rancor, não tristeza, mas inveja.

Então, não acham que, da mesma forma que um monte de betão não lhes convoca casa, um monte de trombas e xingos xenofóbicos que enfrentamos não acabam por ter o mesmo efeito para nós quando o assunto é tratar Portugal como nosso lar? Não há, neste mundo, sensação de maior imponência do que a de querer tanto integrar-se ao lugar em que vivemos, de todas as formas, e continuar sendo rejeitado. Também acredito que não há, ultimamente, causa maior de solidão.

Vejam bem, toda experiência de imigração é válida. As nossas, a de tantos outros imigrantes de diferentes nacionalidades aqui em Portugal, as vossas. Mas por que os vossos ouvidos só se abrem ao lamento próprio? Por que o caminho, quando apontamos que existe, sim, xenofobia em Portugal, é dizer: "Veja bem, mas não podes pautar o país só porque isso aconteceu consigo", ou ainda "Ah, mas não ligue a essas coisas, sabe? É que haviam as Mães de Bragança e há uma ideia...". Já não percebemos todos que o caminho de fingirmos que isso não existe ou atribuirmos a culpa de um comportamento recorrente a algo com tanta distância geracional só irá perpetuar e aumentar o abismo entre nós?

Me digam, qual música devemos entoar para que sejamos também ouvidos e acolhidos? Já dançamos conforme vossa banda toca, ou seja, seguimos os intermináveis bailes burocráticos, aceitamos as notas de dó quando o assunto é encontrar moradia e emprego digno, até cantarolamos nos vossos ouvidos nossos sotaques, nossas novelas, nossos sambas e funks noite adentro. Mas quando dizemos "Apesar de AMAR viver em Portugal, gostaríamos de pontuar que poderia existir mais harmonia", somos logo massacrados com uma ópera de "Se não está satisfeito, vá embora", como se estivessem nos fazendo um favor.

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Antes que digam. Ou melhor, ainda que digam, pois já sei que há aqueles que não chegarão a ler tão longe. Não desfaço de nenhuma das canções apresentadas e, inclusive, me rendo semanalmente ao som que irá representar Portugal na Eurovisão. Mas são tempos tristes. Nas palavras de Luca, são tempos de empatia seletiva. Presenciei, durante as semanas que antecederam a votação do Festival da Canção, o Portugal que pensei que encontraria: um país acolhedor do sentimento do próximo, ciente de que a imigração já é um processo difícil. Vi uma nação unida ao redor de um som que canta as mazelas que um imigrante vive tentando se refazer mentalmente de todo trauma de separação da terra-mãe. Quase foi possível tocar um Portugal tão unido, com uma cultura forte de amar sua terra e sentir uma falta tremenda de seus jeitos e povos, que parecia uma sensação de pertencimento e tradição inabalável.

Mas, passadas as apresentações, fiz uma rápida visita aos comentários de ambos os artistas que subiram aos palcos e vi logo que, na verdade, este abraço ao imigrante tem e sempre teve nacionalidade e sotaque. A cultura portuguesa, que parecia inabalável, era tratada como algo que devia ser protegido com tanta ânsia que, se compartilhada com qualquer outra nacionalidade, os portugueses eram capazes de perdê-la, pouco a pouco, como se dividissem um pedaço de pizza. E os nossos traumas se resumiam a três sílabas: "mi-mi-mi".

São tempos muito tristes, Luca. Mas estou certa, e ainda não me convenceram do contrário, de que a cultura portuguesa, se é pizza, é um rodízio interminável e que nada que eu faça aqui com meus sambas e "uai’s" vai mudar isso. Viemos no espírito de Dona Ivone Lara (salve!) pisar nesse chão devagarinho e só queremos a nossa bênção para que o meu contributo e as minhas dores sejam também vossas. E o nosso pedido de licença é para que possamos contribuir para a transformação de uma consciência social de um povo português tão receptivo quanto presenciamos na última semana. Tão cheios de si que saibam que podem aceitar mais do que a novela sem perderem a tradição. Nós não queremos tomar Portugal, queremos ser parte dele.

Deixemos o "mi-mi-mi" de lado, ouçamos mais uns aos outros, expandamos nossas fronteiras da empatia e expandiremos também, para longe, as fronteiras de integração entre imigrantes e portugueses. Temos tantas outras notas além do mi e da que podem sentir, fá(çamos) o Sol juntos.

*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.

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