Texto: José Manuel Diogo*Foi ao visitar a exposição Complexo Brasil, em Lisboa, e observar portugueses e brasileiros reunidos numa roda de samba do Coletivo Gira, que me ocorreu uma pergunta simples e desconcertante: por que é que aquilo funciona tão bem ali — e parece tão difícil fora dali? Durante alguns minutos, não havia suspeita, nem cálculo, nem ruído. Havia apenas gente. Corpos no mesmo compasso, vozes que se reconhecem, um entendimento silencioso que dispensa explicações. E foi justamente essa harmonia tão natural que me inquietou.Porque quem vive em Portugal sendo brasileiro sabe que ela nem sempre se repete no quotidiano. Não se trata, na maioria das vezes, de hostilidade aberta. É algo mais subtil: um cuidado excessivo com as palavras, um silêncio que pesa, a sensação de que se está sempre a ocupar um lugar provisório. Como se a pertença tivesse prazo de validade. Como se fosse preciso justificar, o tempo todo, o direito de estar. A cultura, curiosamente, suspende esse jogo.Numa roda de samba não há currículos, estatísticas ou discursos identitários. Há presença. Há escuta. Há uma espécie de acordo implícito: aqui, ninguém precisa provar nada. E talvez seja exatamente por isso que a cultura incomode tanto quando é levada a sério. Porque ela desmonta narrativas fáceis. Porque ela mistura. Porque ela expõe o quanto certas fronteiras são artificiais.A história mostra que a xenofobia raramente nasce do convívio. Nasce do medo. E o medo, quase sempre, é alimentado por discursos que simplificam o mundo, criam bodes expiatórios e oferecem respostas rápidas para angústias complexas. Em tempos de incerteza — económica, política ou identitária — esse mecanismo reaparece com força. Não é novo. Apenas muda de roupa.Portugal conhece bem esse movimento. A sua própria identidade foi construída no encontro, na travessia, na mestiçagem cultural. A língua portuguesa é prova viva disso: nasceu do cruzamento, cresceu na mistura, sobreviveu porque nunca foi pura. Negar essa herança é negar a própria história. Mas há momentos em que a memória falha. E, quando falha, surgem discursos que confundem proteção com exclusão, identidade com fechamento, cultura com trincheira. Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsAppÉ nesse ponto que a cultura deixa de ser entretenimento e volta a ser o que sempre foi: um espaço de resistência. Porque a cultura não grita — ela permanece. Não impõe — ela atravessa. Não simplifica — ela aprofunda. Ela é o oposto da desinformação, que vive da pressa e do ruído. A cultura exige tempo, escuta e disposição para o outro. E talvez por isso seja hoje o antídoto mais eficaz contra o medo que se espalha em ondas rápidas, mas rasas.Aquela roda de samba em Lisboa dizia muito mais do que parecia. Dizia que a integração é possível quando não é forçada. Que o encontro acontece quando ninguém tenta dominar a narrativa. Que a convivência nasce do reconhecimento mútuo, não da tolerância condescendente. No fundo, dizia algo simples e poderoso: quando as pessoas se encontram de verdade, o medo perde voz.E talvez seja essa a grande lição do nosso tempo — a cultura não resolve tudo, mas lembra aquilo que nunca deveríamos esquecer: que antes de sermos estrangeiros, somos humanos. Antes de sermos estatística, somos história. Antes de sermos ruído, somos voz. É nessa voz partilhada que ainda reside a possibilidade de futuro.*José Manuel Diogo é escritor, cronista, consultor internacional e produtor cultural. Com uma carreira marcada pela paixão pela língua portuguesa, é autor de obras sobre inteligência, cultura e política. Fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos e idealizador de projetos culturais e literários de impacto global, José Manuel combina sua experiência em jornalismo, gestão e literatura para promover diálogos entre culturas e idiomas. Entre Portugal e Brasil, dedica-se à criação de iniciativas que celebram a língua portuguesa como território de conexão, inovação e identidade..O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicado à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil..Crônica. Um sopro de bem-querer.Opinião. A história dos imigrantes é como a da família que deu origem ao Natal