"Miriam, José e Joshua são um reflexo de uma outra pequena família, que encontraram muitas portas fechadas já na época em que deram origem ao espírito do Natal".
"Miriam, José e Joshua são um reflexo de uma outra pequena família, que encontraram muitas portas fechadas já na época em que deram origem ao espírito do Natal".Foto: VATICAN MEDIA HANDOUT / Epa / Lusa

Opinião. A história dos imigrantes é como a da família que deu origem ao Natal

"Imigrar deixou de ser sonho em poucos meses e passou a ser um fardo que ele, Miriam e até o próprio Joshua, ainda no ventre de sua mãe, já carregava".
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Texto: Luísa Cunha

Longe de mim desrespeitar crenças ou valores de quem quer que seja. Fui criada com o ímpeto de dar sempre o benefício da dúvida a toda e qualquer pessoa que conheça, acredito nas máximas de “nem todo mundo tem um dia bom” ou de “não conhecemos a luta interna de ninguém”. Acredito, ao meu próprio pesar, no melhor das pessoas, ainda quando insistem em provar contrariamente. E não sou hipócrita, o faço por mim. Faço a minha parte de manutenção da fé na humanidade, no respeito e na convivência. Acredito na ignorância e na sua comunhão com a inocência por lapsos de egocentrismos, embora esta crença já me tenha testado à flor da pele em várias ocasiões, tanto no Brasil como em Portugal.

Acredito piamente nos lapsos atuais vivenciados, na “luta” pela manutenção e proteção dos nossos, sobre tudo e qualquer coisa (ou pessoas), que muitos devem sentir para manifestarem um ódio tão grande por qualquer fato externo que ameace a segurança de sua dignidade própria, no campo do trabalho, moradia e educação. E por tanto acreditar, que o vendaval passa, que se a água fica turva e vira vinho pode voltar a clarear, que os sedimentos que impedem a visão clara, racional e humana podem decantar, me considero uma pessoa de fé.

E é por essa fé que também acredito que certos argumentos cabem analogias e até são dela dependentes, para que algumas palavras atravessem a poeira e detritos de ódio e toquem alguns ouvidos e bons-sensos. E é neste ponto que trago a história abaixo, a qual vim ensaiando divulgar desde as últimas semanas de dezembro, real em mais do que muitos carecem de admitir. A história de uma família que imigrou a Portugal e que antes do Natal de 2025, viu-se obrigada a partir.

A mãe, de origem israelita, o pai, europeu. Ela, grávida do primeiro filho, descobrindo a gravidez pouco antes do último Natal. Um milagre, segundo relataram conhecidos, já que por questões próprias Miriam perdia a esperança de formar uma família com tanta facilidade. Em conjunto, por conflitos políticos e sociais onde moravam, ambos sonhavam em dar uma vida melhor à criança e decidiram que o melhor para Joshua seria nascer com nacionalidade europeia, na terra do pai, tendo seu registro como cidadão de uma parte do mundo que, por forças alheias às vontades dos dois, inegavelmente abriria mais portas e fronteiras ao futuro do bebê. Como todo ato de imigração, foi uma decisão difícil. Deixar o certo pelo incerto, o berço da família, essencial para uma mãe de primeira viagem, para buscar um sonho. Fizeram as malas, deixaram amigos, uma vida e uma história profissional, educacional e social para trás. E vieram, com todo desejo de vida, para Portugal.

Logo na fronteira, José Manuel seguiu sem problemas, passaporte vermelho, traços fortes portugueses, nenhum indicativo religioso em suas vestimentas. Miriam, com uma barriga já aparente, tinha, todavia, na sua cabeça um alerta de ameaça invisível. Judaica, levava seu mitpachat e deu azar de pôr os pés no país durante um grande conflito político pelos seus direitos e afirmação como mulher. Um conflito que ela nunca pediu ou imaginou solicitar, usava seu lenço cobrindo os cabelos por um sinal de respeito à sua fé, como as senhoras que ascendem velas em Fátima de joelhos no chão. Não era submissão, era demonstração do seu amor, de onde vinha ao menos. Em terra alheia, mais parecia uma marca na pele que gritava perigo.

E ali, com os portugueses a lhe checar a documentação, a primeira aspereza lhe foi entregue. Sem saber muito bem a diferença entre burca, mitpachat ou hijab, foi levada a uma sala longe das vistas, para uma análise mais profunda de sua legitimidade de ali estar. Entendia Miriam que é um trabalho difícil, separar joio do trigo à primeira vista e que demandava certo empedramento de tratamento. Mas não entendia por que à primeira vista seu lenço na cabeça a denunciou, ou por que sua religião havia de ser motivo de ser joio na terra de seu próprio marido e também de seu futuro filho.

Não protestou, mas assinalou a José o ocorrido, que, impedido de entrar, aguardou ao lado de fora aflito, e pôs-se em contato com os pais portugueses e talvez um advogado, já que atrás das portas e regras da AIMA ninguém percebia bem qual seria o desfecho. Do outro lado da parede Miriam respondeu tudo que foi pedido, com calma e simpatia, mesmo quando lhe perguntaram se só estava ali “para ter em Portugal aquele filho”, quanto tempo de casamento e a validade não só de seus sentimentos mas das certidões na pasta acumuladas.

Por fim, não a fizeram despir-se de sua fé, mostrando os cabelos a quem lhe, de certa forma, violava enquanto futura mãe, mulher e ela própria, professora de história formada. Saiu daquela sala com a sensação de que por isso, tinha o dever de ser grata, ganhou no passaporte a estampa de entrada e a marca de “ser menos” que qualquer um naquela sala, como se fizessem um grande favor. Levantou-se com autorização para entrar em Portugal, com uma entrevista subsequente já agendada.

José, apesar de aliviado, já vinha acompanhando as notícias e tão logo estabelecidos na nova casa, foi atrás de registrar Miriam na junta, nos postos de saúde, cobrindo todos os territórios e certidões estranhas que tomou conhecimento na internet, que estavam sendo pedidas na concessão de autorizações de residência nas entrevistas da AIMA. A mãe de José, incrédula com toda a situação do aeroporto e o desespero do filho e da nora, desejosa pelo neto, se recusava, pelas pessoas que conhecia, a crer que aquele era o Portugal que a representava. “Eu tenho amigas muçulmanas no yoga”, minha manicure é imigrante, brasileira, nunca lhes pediram assim nada, “eles sabem quem está aqui para aproveitar-se do país, vocês não precisam se preocupar”, protestava.

Infelizmente o círculo de convivência dos pais do marido muito pouco representava. Já de sete meses, Miriam foi à entrevista, e para a surpresa dos dois lhe foi pedido o comprovativo de pagamento de registro junto à unidade de saúde de sua freguesia. Um papel que nem o posto emitia, nem o site do governo demonstrava. A AIMA, tão pouco tinha autorização para aquele papel, “não nos cabe fornecer a vocês os documentos”, disse a senhora que lhes atendeu. “Sem isso o processo se complica, terão de aguardar como isso se conclui e talvez apresentar recurso ao processo”. Não sabia de certo informar-lhes mais nada.

Miriam, mesmo que ainda grávida, já havia também dado entrada no pedido de reconhecimento de sua formação, aguardava um documento da direção de ensino para candidatar-se ao próximo ciclo letivo, voltar às salas de aula, como gostava. A certidão não tinha nome, não sabia-se em nenhum órgão quem a emitia ou se de fato existia e, vencida pelo cansaço, foi convencida pelos sogros de focar na maternidade, até porque, por mais que seu português fosse perfeitamente falado e escrito, havia ali um sotaque, que poderia lhe dar problema e influenciar as crianças que lhes fossem assinaladas. “Uma briga com os pais dos miúdos que ela não iria querer comprar”, como disse o pai do marido, que ela havia de entender mais tarde, com um filho português, “o quão importante um professor nativo seria, para o caráter do filho e para sua estrada”.

José ficou perplexo com as miudezas e sensíveis preconceitos que os pais repetiam como se não fossem nada. Miriam, pensando no bem do bebê, engolia seca, chorava sozinha, pensou em desistir de seu orgulho religioso que com tanto amor nutria e cuidava. Afinal, essa xenofobia discreta não era só em casa. Na mercearia assustavam-se quando falava, “não imaginei que alguém como você falasse português”, e o “alguém como você” ressoava em sua face numa expressão de dúvida, vergonha e às vezes até raiva. Imitavam-lhe na brincadeira uma palavra ou outra com sotaque mais carregado, perguntavam-lhe do seu “hijab” e se não era perigoso nas ruas de onde vinha não ver diretamente o rosto das pessoas com quem cruzava. Queria, pensava Miriam, responder que tão pouco via verdadeiramente as pessoas em Portugal, que algumas máscaras de boa vizinhança carregadas de racismo eram tão costumeiras que já os pesavam. Mas ia para casa, olhar no chão, resignada.

José não sabia mais o que fazer, via a esposa esvair-se frente aos seus olhos. Em um jantar de amigos e conhecidos de longa data ouviu dizer à mesa que “precisam-se de mais crianças portuguesas, não mestiças, não estrangeiras, portuguesas puras de sangue e sotaque, sem brasileiros, indianos, muçulmanos nem nada”, um coro que seguiu “não se fazem mais portugueses como antigamente”, um ou outro olhar que lhe encontrou, uma cotovelada de um dos amigos mais próximos a ele que tentava alarmar o grupo do peso daquelas palavras. Não teve coragem de rebater, reflexivo temeu pelo filho Joshua, a que ponto lhe valeria aquela nacionalidade, se assim que vissem Miriam à porta da escola, ela já não serviria para nada?

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O filho, segundo os próprios amigos, não seria português de verdade, a mulher segundo os pais, não cabia na profissão que lhe movia e na qual saciava. Ele já tinha emprego, mas de quanto isso valia, se no contrato do apartamento que queriam comprar só ele poderia constar, se  avida que queria construi juntos, só valia no nome e na “Legitimidade” a ele empregada? De quanto valia correr atrás de um sonho de oportunidades para o filho se ao final, a família ficaria despedaçada?

Imigrar deixou de ser sonho em poucos meses e passou a ser um fardo que ele, Miriam e até o próprio Joshua, ainda no ventre de sua mãe, já carregava. Não importavam os impostos que José contribuía, a boa professora que Miriam seria em um país em que sua mão de obra lhe fazia falta, principalmente com a disponibilidade de ambos, de irem a terras interiores, construir junto à comunidade que carecia de atenção das capitais. Nada importava. Ja entenderam em pouco tempo que para a opinião social portuguesa a xenofobia não existia e “Portugal era dos portugueses” e esses ninguém sabia quem selecionava ou realmente integrava. Uma discricionariedade perigosa. Uma violência disfarçada.

Ainda não havia chegado agosto, decidiram fazer mais uma vez as malas. Os sogros chorosos imploraram para que ficassem, “vocês vão ver, isso é para mudar as leis, daqui a pouco tudo se acalma, só vai ficar quem realmente quer ver o país crescer e isso não importa de nada”, não entendiam ou suspeitavam dos efeitos a longo prazo de discursos de separação, ou qualquer tipo de exclusão social, seja religiosa, política ou étnica, que Miriam não só já havia vivido mas também por toda vida estudava.

Antes das temperaturas subirem, antes de que a AIMA rejeitasse Miriam e afirmasse a separação da família, mandando-a de volta para sua terra, uma separação que ambos sentiam não entre si, mas entre eles e Portugal, resolveram ir embora. Sabiam que este ato para muitos seria um alívio: “se foram, não mereciam estar aqui”, ou “ainda bem que foram embora, imigrantes a menos para termos de expulsar ou aturar”, mas nada disso os afetava. Imigrar certamente demanda resiliência, mas até que ponto a resiliência é suficiente quando o lugar onde resi(stes)des te expulsa a todo momento, abertamente ou através de comentários discretos e votos “pela mudança” de “faxina” pelo país, em sussurros higienistas e discursos que parecem um roteiro de shows de piadas?

A fé na humanidade certamente não foi perdida pelo casal, mas entenderam que, assim como todos que em Portugal votam por um país “primeiro para portugueses”, precisavam colocar a si próprios também em um pedestal, e prezando pela fé e dignidade do núcleo familiar, tiveram Joshua na sua terra natal. Fiquei sabendo pouco depois que, com o filho no colo, José e Miriam assistiram atônitos ao noticiário internacional, da criança imigrante que teve os dedinhos decepados em uma escola. Olharam para o filho que lhes agarrava a mão e, ainda que ele estivesse distante de dizer as primeiras palavras, ambos sabiam que queriam que estas fossem de amor, tolerância e respeito, e que, infelizmente, isso não seria possível no momento em Portugal.

Os sogros já foram de visita à criança e, ao contrário do que pensavam, não se sentiram ameaçados nas ruas por lenço algum. Não sofreram pelo sotaque diferenciado, não ouviram de ninguém que o neto era menos palestiniano, onde teve seu registro nacional, só porque era filho de pai português, ou porque havia de algum dia comer bacalhau. Gente ruim há em todos os países, Miriam sempre repetia aos pais de José, e certamente há muçulmanos, brasileiros, israelitas, indianos e tantos mais outros que estão aí pelo globo só querendo fazer mal. Mas ligar atitudes e escolhas individuais à nacionalidade, traçar toda uma raça por um exemplo ou histórias antigas não beneficia a ninguém, não beneficiou a mim, alguém que vos ama e sei que amam também, e está na hora de mudarmos nossas ações não só porque elas afetam alguém diretamente próximo do nosso núcleo, mas sim tendo em conta a força que uma comoção nacional neste sentido de ódio tem.

O apelo de Miriam faço meu, e tenho certeza, também de outros imigrantes em Portugal. Como disse, sou uma pessoa de fé e peço desculpas se a história acima foi ofensiva, mas é apenas demasiadamente real. Miriam, José e Joshua são um reflexo de uma outra pequena família, que encontraram muitas portas fechadas já na época em que deram origem ao espírito do Natal.

E o que desejo para 2026 é muito simples: é que não sejamos hipócritas, que reconheçamos as extensões de nossas palavras e que pensemos, ainda que por muito difícil que seja, em seguir aquilo que pregamos ou acreditamos dentro de cada um de nós, seja aos domingos comungando, seja dentro da sua própria esfera de religião. E também, se não acreditas em nada esotérico ou não tenhas fé sem toque ou nome, que não sejamos hipócritas de gritar por um país grandioso e afirmar que se faz isso sem a contribuição de uma mão de obra imigrante no atual mercado mundial. 

Que em 2026 mudanças de leis não sejam máscaras para xenofobias, que “botar a casa em ordem” não seja sinônimo de uma imposição de superioridade portuguesa carregada de uma obrigatoriedade da parte dos imigrantes por demonstrar apenas gratidão por poder ficar no país em que contribuem diariamente, em todas as esferas de cidadania. Que 2026 seja um ano de comunhão, entre homens e nações, e que se assim não for, que saibamos, nós imigrantes, nosso papel grandioso no dia-a-dia, e que lutemos pela nossa paz e pela nossa integração, em qualquer território que seja, ainda que isso signifique fazermos as malas e sermos resilientes em outro lugar.

*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
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