Texto: Diogo Batalha*Nos últimos tempos, virou moda acusar tudo e todos de cumprirem uma "agenda woke". Se alguém fala em igualdade, se defende direitos humanos, se critica injustiças sociais, enfim, tudo isto seria ultra-woke. Este rótulo virou um espantalho conveniente para quem prefere apontar inimigos imaginários a discutir problemas reais da sociedade.Mas vamos falar de algo concreto: se “woke” significa defender direitos básicos, então a Constituição de Portugal, uma das mais progressistas da Europa, sem dúvidas, o é.Vejamos o Artigo 1.º: "Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular." - Dignidade humana? Respeito à vontade popular? Só isso já seria o bastante para soar "woke". A ideia de um mundo plural pode parecer ameaçadora para aqueles que preferem um mundo onde só algumas vozes são ouvidas.Já o Artigo 13.º vai ainda mais longe: "Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação econômica, condição social ou orientação sexual." - Em outras palavras, igualdade para todos, independentemente de cor, classe ou país de origem. Mas, para alguns, que falam em "portugueses primeiro", defender isto é coisa de woke.O Artigo 59.º garante que "todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião e convicções políticas ou ideológicas, têm direito à retribuição do trabalho, à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, à limitação das horas de trabalho e ao descanso e lazer." - Ou seja, direitos trabalhistas, salário justo e tempo para viver além do trabalho. O mesmo discurso que muitos chamam de "marxismo cultural" ou "agenda globalista" já está assegurado na lei há décadas.E que tal o Artigo 66.º? Ele estabelece que "todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado". - Se ser woke é falar em sustentabilidade e preservação do planeta, então até a Constituição exige que Portugal seja mais "woke".Agora, vejamos o Artigo 15.º, que fala sobre os imigrantes: ele diz que os estrangeiros que vivem em Portugal têm direitos e deveres como qualquer português. Ou seja, não são cidadãos de segunda classe, mas sim trabalhadores, contribuintes e pessoas com direito à dignidade e proteção do Estado. Mas os partidos conservadores que gritam contra os woke acham que isto é um problema.Esse medo do “wokismo” não surgiu do nada. Nos Estados Unidos, o termo “woke” começou como um alerta contra injustiças estruturais contra classes marginalizadas. Mas logo foi transformado numa palavra mágica para assustar quem tem medo de mudanças. O famoso pânico moral. Em Portugal, virou sinônimo de qualquer coisa que incomode os mais conservadores.Curioso é que muitos dos que criticam os "woke" usam os direitos garantidos pela Constituição quando lhes convém. Reclamam da censura, mas querem proibir debates sobre racismo, igualdade de gênero e direitos LGBTQ+. Defendem a “liberdade de expressão”, mas só quando são eles a falar.Usam argumentos falaciosos, mas populares, como os de que os imigrantes “sobrecarregam o sistema”. Mas os dados mostram que contribuímos mais para a Segurança Social do que recebemos. Ou seja, somos parte fundamental da economia. No fundo, este é um discurso completamente imaginário.Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!A luta por direitos não é novidade – o que muda é o nome do espantalho que tentam usar para deslegitimá-la.A verdade é que Portugal já passou por isso antes. Houve um tempo em que defender eleições livres, liberdade de imprensa e direitos trabalhistas também era visto como perigoso. Durante a ditadura, muitos que lutavam por um país mais justo eram chamados de "subversivos" ou "comunistas", da mesma forma que hoje chamam de "woke" quem defende direitos fundamentais e até básicos. Mas foi essa luta que trouxe a Revolução dos Cravos, que garantiu não apenas a democracia, mas também os direitos que hoje fazem parte da Constituição. Se naquela época tivessem cedido ao medo das mudanças, Portugal ainda estaria preso a um regime que censurava, perseguia e reprimia. Se igualdade, justiça social e dignidade são "woke", então a Revolução dos Cravos também seria, se esta fosse uma condição disponível na época. Mas poder ser rotulado de “woke” é coisa recente. E, sinceramente, duvido que alguém queira voltar a um tempo onde esses direitos universais não existiam. A não ser, é claro, quem se beneficiava dessa falta de direitos.Com as eleições de Portugal chegando, é bem capaz que a turma do ‘anti-woke’ comece a gritar mais alto – uma jogada que a gente já conhece bem no Brasil, com as “mamadeiras de piroca”(sic) e os kit gays nas escolas. Quando querem tirar direitos que são de todos nós, a regra é clara: brasileiros e portugueses têm que combater isso juntos. Colocar dignidade e igualdade na Constituição não é ‘mimimi’: é o mínimo que um país decente precisa para funcionar. Viver em sociedade não pode ser “cada cabeça uma sentença”. Do contrário, nada funcionaria. Por isto, haver diretrizes como a da constituição de um país é tão importante. Dito isto, será que o problema está em quem defende direitos básicos e que se cumpra o que diz a constituição? Ou em quem tenta retirá-los? Quando podemos chamar ideias como as que estão na Constituição de ‘woke’, talvez o que realmente querem é um país onde esses direitos deixem de existir. E isso, sim, seria um risco inaceitável para qualquer sociedade que se diga democrática.*Diogo Batalha é redator há quase duas décadas (e desde 2015 vive em Portugal). É aracajuano desde que nasceu e detesta que não saibam onde Aracaju fica no mapa. Pai de uma pequena portuguesa, tenta achar palavras para explicar até mesmo o que ainda não consegue compreender..O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil..Crônica. Cinema, pipocas e heranças indígenas.Opinião. Pantanal em perigo