Sala de cinema em Portugal.
Sala de cinema em Portugal.Reinaldo Rodrigues / Global Imagens

Crônica. Cinema, pipocas e heranças indígenas

"No Brasil, das milhares de línguas indígenas que já existiram, restaram cerca de 200. E a maioria corre risco de extinção: até 2030, estima-se que entre 45 e 60 idiomas desaparecerão."
Publicado a

Texto: Diogo Batalha*

Lembro-me de 2019, quando fui assistir A Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos. Foi a minha primeira vez no Cinema Ideal, em Lisboa. Era um dos poucos locais que exibia o filme e eu queria ver algo diferente. A trama era bela: um jovem indígena enfrenta o luto do pai e a responsabilidade de se tornar guardião do conhecimento da aldeia. Ou seja, um não-blockbuster sobre herança ancestral.

Acostumado a salas com pipoca, perguntei no balcão se havia. O atendente pareceu surpreso:

— Desculpe, mas aqui não vendemos isso.

E eis que uma ironia da arte surgiu: eu assistiria a um filme sobre povos originários brasileiros, no único cinema próximo que o exibia, mas sem poder usufruir de uma das maiores contribuições deles para a nossa cultura — o famoso milho estourado.

Já parou para pensar na pipoca? Camões, por exemplo, nunca a provou. Nem escreveu sobre ela em seus textos. Mas, hoje, está no dicionário da língua portuguesa — enquanto os nativos que lhe deram nome seguem relegados às notas de rodapé. Pipoca: do tupi pï’poka, “milho que estoura”. Um termo que resistiu ao tempo, como a mandioca e o açaí. Enquanto isso, muitas outras palavras indígenas se perderam.

Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!

Imagino que nenhum descendente dos povos que criaram essa tradição receba parte dos US$ 20 bilhões do mercado global das popcorns. Afinal, heranças culturais nem sempre se traduzem em benefícios. Muitas vezes, certos costumes resistem, mas seus criadores são marginalizados.

No mundo dito civilizado, o que realmente importa não é quem dá origem ao conhecimento, mas quem consegue vendê-lo pelo melhor preço.

A história está repleta destes paradoxos. Após o terremoto de 1755, por exemplo, o Marquês de Pombal precisou reconstruir Lisboa. Parte dos recursos veio do Brasil. Na época, os jesuítas utilizavam a mão de obra das aldeias nativas. Pombal decidiu tomar para si este controle. Criou o Diretório dos Índios, em 1757, declarando que os ameríndios passariam a ser “portugueses” — desde que abandonassem seus nomes, seus idiomas, seus costumes… e pagassem impostos à coroa.

A Língua Geral, uma mistura de expressões indígenas e português, era amplamente falada, mas foi proibida. O país seguiu com um idioma único de maneira oficial. Enquanto isso, palavras como “pipoca” foram assimiladas ao vocabulário, mas sem a história de quem as trouxe até aqui.

E este é o ponto: até hoje, muitas comunidades lutam por espaço, enquanto elementos de suas tradições são absorvidos e ressignificados por grandes indústrias. Ao longo dos séculos, impérios incorporaram influências de territórios colonizados, mas nem sempre os povos que originaram essas contribuições tiveram voz para contar suas versões do mundo.

Sala de cinema em Portugal.
Opinião. A Criação do SFI - Serviço de Fronteiras Indígenas

No Brasil, das milhares de línguas indígenas que já existiram, restaram cerca de 200. E a maioria corre risco de extinção: até 2030, estima-se que entre 45 e 60 idiomas desaparecerão. Em alguns casos mais extremos, há apenas um falante vivo.

Enquanto isso, o “milho que estoura” segue presente nas bilheteiras, nas fábricas e nos supermercados. Aparece em Hollywood, em festivais de cinema e em campanhas publicitárias. Mas, para quem o criou, nunca virou riqueza. Talvez porque, no mundo dito civilizado, o que realmente importa não é quem dá origem ao conhecimento, mas quem consegue vendê-lo pelo melhor preço.

Até hoje, muitas comunidades lutam por espaço, enquanto elementos de suas tradições são absorvidos e ressignificados por grandes indústrias.

No fim, o ciclo se repete: tragédias viram “curiosidades” e a exploração se torna patrimônio individual, mas celebrada como conquistas coletivas. Afinal, a pipoca “é de todos nós”. Mas quantas culturas ainda precisarão ser estouradas antes que os povos indígenas sejam reconhecidos para além das palavras que nos deixaram?

A verdade é que a pipoca seguirá pipocando, porque os grãos não têm memória. Já para muitos povos originários, restou ver sua cultura ser servida como aperitivo no banquete antropofágico da história.

Direitos reservados

*Diogo Batalha é redator há quase duas décadas (e desde 2015 vive em Portugal). É aracajuano desde que nasceu e detesta que não saibam onde Aracaju fica no mapa. Pai de uma pequena portuguesa, tenta achar palavras para explicar até mesmo o que ainda não consegue compreender.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
Diário de Notícias
www.dn.pt