Opinião. Um museu de sangue
Texto: Diogo Batalha*
Há quem diga, em Portugal, que falar de escravidão é ensinar a ter vergonha da própria história. Como se esconder o passado fosse um truque de mágica capaz de limpar a consciência nacional. Como se a vergonha estivesse em quem a conta, e não em quem a cometeu.
Portugal, com sua história esculpida em mármore e glória, tenta esconder justamente aquilo que todos deveriam lembrar. O tráfico transatlântico de escravos continua trancado no porão da memória coletiva. Como se fosse possível esconder o elefante da escravatura numa sala de cristais. Afinal, Portugal e o Brasil estiveram no centro da maior operação escravista da história.
O tráfico não foi só violência racial. Foi também base econômica de muitos impérios europeus. A Companhia de Comércio do Brasil controlava o comércio com a colônia e trazia pessoas escravizadas de África. Quem lucrava com isso era a Coroa Portuguesa e, claro, os traficantes. Já o povo português comum seguia na miséria. Uma dinâmica que beneficiava uma minoria, explorando africanos e também portugueses.
A artista Grada Kilomba sabe como este debate é delicado. A sua obra O Barco, uma instalação sobre a escravidão aclamada internacionalmente, foi vandalizada por quem prefere que o passado continue enterrado com os ossos no fundo do mar. Quando se pede que Portugal reconheça esse passado, dizem que é um ataque à honra nacional.
É curioso este conceito de honra em que é preciso esconder cadáveres para manter o orgulho em pé. Uma nação forte não é a que apaga a história, mas a que a encara com responsabilidade. Só assim é possível olhar o espelho do passado e refletir sobre o futuro.
Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!
Há anos tenta-se erguer, em Lisboa, um Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas. O projeto está aprovado, mas tropeça sempre na mesma pedra: “onde” e “como”. Agora, com a extrema-direita no governo, é provável que a demora se torne método, pois o negacionismo ganhou cargo oficial.
Em 2022, o ex-primeiro-ministro António Costa pediu desculpas pelo massacre de Wiriamu, em Moçambique, chamando-o de “ato indesculpável que desonra a nossa história”. Mostrou que encarar a verdade não desonra ninguém. O que desonra é fingir que não aconteceu. Pena ter sido uma exceção que confirma a regra nacional.
Estes são apenas alguns exemplos que conheço. A responsabilidade histórica não é um fardo que se herda com culpa, mas uma oportunidade de construir um futuro mais justo com consciência. Algo que outros países já fazem. Por que só Portugal insiste em não o fazer?
Como herdeiros de um império, há o dever de contar a história por inteiro e não apenas numa versão com cortes do diretor. A história não é destino inevitável, mas o resultado de escolhas humanas. E o colonialismo português não foi acidente. Foi uma decisão política de elites que lucraram durante séculos, até que o 25 de Abril pôs fim ao império e passou a oferecer direitos básicos a todos os portugueses. E isto foi há apenas 50 anos.
Não dá para fingir que o passado não importa. Ele ainda alimenta o racismo estrutural que mata, exclui e silencia hoje.
Agora, a extrema-direita portuguesa defende que só é “português originário” quem tem sangue português. Mas se o critério for mesmo por sangue, então será preciso abrir as portas para milhões de brasileiros.
Sim, porque se nem a arte nem os museus comovem estes portugueses, talvez a ciência o consiga. Um estudo publicado em 15 de maio de 2025, na revista Science, conduzido pela investigadora Kelly Nunes, da Universidade de São Paulo, comprovou o que a história já contava: que a miscigenação no Brasil foi feita com violência. O DNA mitocondrial do brasileiro revela mães africanas e indígenas. Já o cromossoma Y indica uma grande incidência de pais europeus.
Nem a mais ingênua das pessoas acredita em grandes casos de amor nas senzalas do Brasil. E muitos brasileiros conhecem a expressão “minha avó foi pega no laço”, referindo-se ao sequestro de mulheres indígenas, tratadas como animais em propriedade privada.
A verdade é que os navios negreiros mudaram até a rota dos tubarões no Atlântico, de tantos corpos negros lançados ao mar. Seria coincidência que, até hoje, a carne mais barata do mercado seja a carne negra?
Não há, em Lisboa, um grande museu dedicado à escravidão. Mas, por outro lado, há sempre o Brasil.
Se calhar, o sangue brasileiro é esse museu que nunca fecha. O Museu em Memória da Escravatura já existe dentro de cada um de nós. Se o DNA mitocondrial guarda a dor das mães escravizadas, a umbanda e o samba guardam a sua resistência. A ciência comprova a violência, mas a cultura prova que, se os genes são um monumento ao horror, a arte é o nosso monumento à liberdade.
Agora que sabemos dos dados da pesquisa, talvez seja hora de perguntar:
“Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas causadas por Portugal?”
Mas estará o orgulho português pronto para ouvir esta resposta?
*Diogo Batalha é redator há quase duas décadas (e desde 2015 vive em Portugal). É aracajuano desde que nasceu e detesta que não saibam onde Aracaju fica no mapa. Pai de uma pequena portuguesa, tenta achar palavras para explicar até mesmo o que ainda não consegue compreender.