Texto: Cristina Fontenele*A Páscoa é um período marcado por atos religiosos, encenações teatrais, reunião familiar, renovação da fé e da esperança. Suscita um espírito de mais compaixão pelo outro. Para os imigrantes que celebram a data, é uma época também para despertar a saudade, já que nem sempre os entes queridos estão por perto para um abraço fraterno e a partilha de momentos em conjunto.Para mim, a Páscoa traz uma memória afetiva com minha avó materna, e tem sabor de pão de coco e bacalhau. Foi pelas mãos da minha avó que experimentei pela primeira vez o tal peixe. A receita tinha gosto de carinho e aconchego. O almoço de domingo era regado a bacalhau cozido com batatas em rodela, cebola, azeitonas, leite de coco, azeite e ovos. Depois, a sobremesa ficava por conta do ovo de chocolate, guardado a semana inteira para ser aberto especialmente nesse dia. Costume que repito fiel - não se abre o ovo antes do domingo de Páscoa.A exemplo do que é o folar da Páscoa para os portugueses, o pão de coco tem o mesmo lugar reservado nas mesas da minha terra. Inclusive, no dia 15 de abril, a iguaria foi reconhecida como patrimônio histórico-cultural e imaterial do Ceará. Várias padarias e confeitarias aumentam a produção nesta altura e o alimento é tão popular que vira até presente. Quem vem me visitar em Lisboa já sabe o que eu sempre encomendo. Cada região do Brasil tem suas tradições de Páscoa e, quando se é imigrante, tenta-se adaptar os hábitos ao novo país de morada. Uma amiga que veio da zona norte de São Paulo diz que mantém em Portugal o jejum de carne durante a quaresma e as orações, práticas ensinadas pela mãe muito religiosa. “Ela não nos deixava nem limpar a casa, nem ouvir música, porque tínhamos que respeitar o luto da memória da morte de Jesus”. A paulistana conta que o sábado era também muito esperado devido ao ritual de “Malhação do Judas”. O boneco representando o apóstolo era confeccionado com trapos, roupas velhas e materiais diversos, depois amarrado em um poste e batido ou queimado como retaliação por ter traído Jesus. Outra amiga, nascida no Mato Grosso do Sul, revela que sua memória de Páscoa é a família reunida para o almoço no domingo, o peixe assado como prato principal e os ovos de chocolate vegano que ela mesma produzia para toda a família, com muito carinho. “Aqui em Portugal a família é pequena, mas nos reunimos e celebramos também. Páscoa para mim é a vitória da vida sobre a morte, esperança de vida eterna”, destaca.Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!Momento familiar é o que também significa a Páscoa para outra amiga. Natural do Paraná, ela mora em Portugal há vinte anos e somente aqui conseguiu partilhar a vida com mais proximidade com os filhos. Se no Brasil não havia nenhum tipo de cerimônia, em Lisboa aproveita o tempo para repor o que um dia já foi ausência. Na Sexta-feira Santa prepara o almoço preferido da prole e desfruta do tempo de união.Uma baiana que conheci no salão de beleza disse que trocou o acarajé e a moqueca de peixe pelo borrego ao forno com batatas. Trinta anos residindo em Portugal mudaram suas tradições culinárias de Páscoa. No mesmo local, encontrei uma portuguesa, filha de mãe angolana, que detalhou seus hábitos de Semana Santa: missa no domingo, caça aos ovos pelas crianças, almoço em família que, em geral, estende-se para o jantar, e uma mesa farta com carnes diversas, sobretudo, cabrito assado..Bacalhau ou cabrito? Pão de côco ou folar? As diferenças na celebração da Páscoa entre Brasil e Portugal.Nessa conversa sobre imigrantes e Páscoa, perguntei ainda a uma amiga conterrânea se a convivência com o companheiro português influenciou a forma como ela registra a data. Segundo me respondeu, a memória dos ovos de chocolate da infância deu lugar ao tradicional bacalhau da nova família portuguesa.Com familiares, sozinho, entre amigos, o imigrante vai atravessando os anos, as datas festivas, relembrando suas raízes e criando novas memórias. Como pode, como consegue, com passagens menos ou mais felizes.Este ano, celebro a Páscoa comigo mesma. Não sou propriamente religiosa, mas espiritualista e ecumênica. Aproveito os tempos que sugerem introspecção para refletir sobre como tenho conduzido minha vida, agradecer pelo caminho percorrido e os apoios que me chegam por diferentes vias. Ainda bem que estamos sempre em transformação.Especialmente saudosa, preparei neste domingo a receita de bacalhau em homenagem à minha avó. Fechei os olhos e imaginei a mesa posta, na cozinha de casa, eu ainda criança, nós duas sentadas. Ela ao meu lado, desde sempre, para sempre.*Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho..O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicado à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil..Opinião. A Arte, uma bela companhia do imigrante.Opinião. Indiferença, preconceito ou rancor: o que sentem os brasileiros pelos portugueses?