Fim de tarde no Jardim do Morro, no Porto.
Fim de tarde no Jardim do Morro, no Porto.Reinaldo Rodrigues

Opinião. Indiferença, preconceito ou rancor: o que sentem os brasileiros pelos portugueses?

"Este texto é um convite para olharmos no espelho e nos despirmos da superioridade de exigir que Portugal nos conheça antes de nos julgar, sendo que não topamos fazer o mesmo".
Publicado a

Texto: Luísa Cunha*

Diria que, como imigrante brasileira acolhida em Portugal, já passei por alguns estágios de sentimentos, até conseguir repousar em uma certa admiração. Comecei com uma indiferença quase pura de tão ingênua, afinal, antes de decidir me mudar para Portugal, a única coisa que me vinha à cabeça sobre o país era o bacalhau, intercalado com a melodia de Vira-Vira, dos Mamonas Assassinas.

Não me culpo, sinceramente, por essa ignorância cultural inicial. Primeiro, porque o espírito jovem que me arrancou do Brasil não tinha tempo para esse estudo. Segundo, porque sinto que talvez esse sentimento de indiferença que temos por Portugal também seja partilhado por muitos outros compatriotas — imigrantes aqui ou não — quando escutam sobre o país. E sejamos sinceros: com um país de dimensões como o Brasil, com tanta riqueza musical, cênica, gastronômica e de sotaques... por que haveríamos de nos preocupar com o que há lá fora? Ou ainda, como haveríamos de ter tempo para explorar o que está além do que nós mesmos já produzimos?

Escrevendo este artigo, lembrei muito da fala da querida Fernanda Torres, em uma entrevista antiga, quando diz que nós temos pena de que o mundo não conheça o Brasil. Mas penso hoje, já do outro lado do Atlântico, que também deveríamos ter pena de o Brasil não buscar conhecer tanto o mundo — e principalmente Portugal. Afinal, talvez isso nos tivesse situado melhor para saber lidar com o baque que levamos com a cultura portuguesa, seus trejeitos mais secos e diretos, seus olhares desconfiados e até com a fala acelerada. Um “despreparo” nosso, sim, mas que, claro, não justifica qualquer ato de ódio. Só nos coloca em risco de cair em contradição, até porque a indiferença, em um contexto de imigração, é quase tão grave quanto o próprio desprezo em si.

Explico. Com uma pesquisa de campo feita no boca a boca, decidi me aventurar sobre este tema porque percebi que, à parte das famílias que conheço que ainda mantêm os laços ancestrais com as tradições portuguesas — bem menos do que eu esperava, dada a forte conexão das linhagens que temos com portugueses —, sabemos, de forma geral, muito pouco sobre a cultura de Portugal. Consumimos quase nada da cultura portuguesa.

Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!

Portugal, por sua vez, consome absurdos do Brasil. Para além da imigração, que carrega inerentemente traços brasileiros aos solos lusitanos; para além da Garota de Ipanema, que é apreciada por todo o mundo, ou pelo samba e funk que ganham espaços nas baladas europeias, estamos presentes nos hábitos de consumo, desde o mercado dos youtubers infantis até o nosso Irmão Grande (Big Brother Brasil – BBB), que tem propaganda destacada nas salas de cinema do país — algo que me trouxe imensas risadas quando presenciei pela primeira vez. Inegavelmente, aqui vivencia-se uma variedade de comidas, músicas, novelas e polos culturais brasileiros gigantescos. E a recíproca simplesmente não é verdadeira.

Então, acredito que a indiferença inicial que temos pode, sim, ser resultado de uma ignorância imposta pela nossa própria dimensão cultural brasileira, somada ao descaso mútuo nas transferências entre as nações irmãs, mas também de alguma mágoa incutida sutilmente durante os anos em que aprendemos história. E vejam bem, não acredito que a forma como aprendemos sobre nosso longo relacionamento nos faça desprezar a cultura de Portugal, mas é que, como esta nunca procurou atingir o Brasil, nós, sinceramente, não voltamos os olhos para cá, senão quando decidimos aqui viver.

Naturalmente, esse desconhecimento de nossa parte me remete a um tópico sensível, pois acredito que o preconceito que alguns portugueses dizem ter sentido em relação aos brasileiros não seja assim tão “palpável”. Afinal, pela própria dissecação do significado da palavra, como podemos odiar algo que sequer buscamos construir um conceito sobre? Talvez as piadas passem dos limites; as imitações de sotaque, eu admito, são insuportáveis, uma vez que também as senti na pele. Mas nada “comparável” ao que temos de relatos dos imigrantes brasileiros aqui.

E talvez a palavra “comparável” esteja errada — e peço que leiam com a maior suavidade possível. Afinal, não me cabe desmerecer os sentimentos dos portugueses ofendidos pelos brasileiros, ou ainda mensurar níveis de “preconceito” ou xenofobia. Mas sabe qual a maior distinção que sempre notei neste ponto? Quando me dizem que se sentiram mal no Brasil por uma piada de mau gosto ou até mesmo por um ato desprezível, meu primeiro intuito é logo pedir desculpa. Ao contrário? O primeiro intuito português é justificar: “Não se preocupe, não pensamos assim em maioria”. Discordo. Mas não é o mérito do dia.

Fato é: nós já estamos aqui. E a indiferença inicial, essas birras infantis, não é mais realidade. Agora, se somos indiferentes, essa é uma opção. E isso me leva à verdadeira e grande questão: por que será que, mesmo depois de anos morando aqui, ainda conhecemos tão pouco de Portugal? Qual a desculpa agora? O que aconteceu? E cheguei à seguinte conclusão.

Desconhecemos porque ainda vivemos no nosso grupo brasileiro. Para mim, ao menos, a experiência como imigrante foi traumática a ponto de me colocar no meu casulo de amigos, comidas e músicas conhecidas. Eram idas e vindas a diferentes mercados à procura de algum queijo que me remetesse unicamente ao Canastra, e passava de olhos fechados pelos outros mais de 80 rótulos de especialidades portuguesas. Spoiler: impossível algo tão bom quanto um verdadeiro Canastra. Mas não me custava levar minha língua a experimentar outros sabores, não é?

Então, percebi que o espaço do desconhecimento, dessa tal apatia com Portugal, foi ocupado pelo rancor do que sofri quando aqui cheguei. Este, sim, me passou direto de um pré-conceito para uma porta formada e fechadíssima a qualquer coisa que me remetesse a Portugal. E foi assim que aprendi, fechada nos meus polos de “casa”, que a indiferença pode até não ser escancaradamente um sentimento negativo, mas, se deixarmos que ela siga ela toma significados como descaso, desdém e frieza — um sentimento tão vil que atrapalha, em pé de igualdade com a xenofobia, nossa integração à cultura portuguesa.

Então, pouco a pouco, pelas frestas da porta, tento deixar sair a indiferença e substituí-la por uma admiração. Ainda que tenha ficado aqui na base do “vão ter me engolir”, ainda que continue em alguns dias somente pela irreverência de todo imigrante em fazer do sonho um sucesso — este texto é um convite para olharmos no espelho e nos despirmos da superioridade de exigir que Portugal nos conheça antes de nos julgar, sendo que não topamos fazer o mesmo. Vamos assumir o dever de entender, conhecer, ouvir, ler e saborear o país em que escolhemos viver. 

E, com isso, já deixo aqui também registrado um apelo: preciso de indicações de bons queijos.

*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
Fim de tarde no Jardim do Morro, no Porto.
Opinião. Tudo o que move é sagrado… mas imigrar é o 8º pecado capital
Fim de tarde no Jardim do Morro, no Porto.
Opinião. A verdade em crise: como debater quando os dados não bastam mais
Diário de Notícias
www.dn.pt