Opinião. O dia em que a extrema-direita renegou Salazar
Texto: Diogo Batalha*
Há quem pense que a política portuguesa perdeu o rumo. Mas, talvez, ela tenha descoberto uma nova maneira de operar o milagre. Ao ponto de fazer a extrema-direita portuguesa fingir que vive com pouco e… criticarem as medidas do ditador Salazar. Tudo isto na mesma semana. Mas como é que isto foi possível?
Sendo a habitação a principal crise do país, no dia 21 de Abril, o líder de um partido da extrema-direita insinuou num debate televisivo que é um homem simples. Que praticamente vive num casebre e que gosta das pequenas coisas da vida. Só “esqueceu” de dizer que estes pequenos prazeres da vida são um “pequeno” apartamento num bairro nobre de Lisboa. Com uma “pequena” piscina. E “pequena” segurança privada 24h.
Quis fazer parecer que é muito humilde. Certamente, deixaria o Papa Francisco orgulhoso — se não fosse o mesmo Papa que condenou a riqueza excessiva e defendeu que devemos utilizar os imóveis vazios para oferecer a quem mais precisa de casas.
Quando me mudei para Lisboa, em 2015, arrendava um apartamento com um quarto em Alfama por 350 euros, com todas as contas incluídas. Hoje, este valor não paga nem um quarto. Que dirá um apartamento com um quarto. Em Lisboa, o preço médio por metro quadrado já ultrapassa os 4.400€, enquanto o salário mínimo não acompanha esta subida.
A solução do governo tem sido subsidiar rendas com dinheiro público – o que, na prática, beneficia sobretudo os grandes senhorios. Segundo o estudo da Causa Pública (2024), fundos imobiliários e investidores estrangeiros controlam 17,2% do mercado, enquanto 60% dos arrendamentos são informais. Essa dinâmica concentra o poder nas mãos de quem trata casas como mercadoria, não como direito básico.
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O Estado, em vez de regulador, virou este fiador de luxo. Evita tocar nos lucros dos grandes e prefere pagar as contas do mercado. Porque mexer nas margens de quem trata casas como mercadoria pode custar votos, penso eu.
E mais: quando os imóveis não estão vazios para a especulação, ainda periga virar um Alojamento Local. O prédio vira hotel, o bairro desaparece e a cidade vira cenário turístico. A crise da habitação não se resume à falta de casas. É também a abundância de casas que já não servem para morar.
Neste contexto, percebe-se que os partidos de direita não são contra o Estado. São contra o Estado quando este atua em favor dos mais pobres. Quando o dinheiro público vai parar ao setor privado, em nome do “mercado”, está tudo bem. Mas quando se tenta limitar estes abusos, qualquer medida é logo chamada de “radical”. Mas até o Papa sabia que, com vontade política, é possível mudar este cenário. Que Deus o tenha.
Mas há também um segundo “episódio curioso” que me chamou a atenção.
Num outro debate, em 16 de Abril, o Bloco de Esquerda propôs estabelecer um limite máximo para as rendas das casas. Algo que já reduziu os preços dos imóveis na Catalunha, por exemplo. Mas bastou esta proposta ser posta à mesa para um outro líder da extrema-direita — de um partido menos relevante do que o citado no início do texto — chamar esta medida de “Salazarista”. E ainda fez questão de afirmar que ela foi um fracasso quando implementada durante a ditadura, nos anos 40 e 50.
Este outro líder, é claro, só “esqueceu” de mencionar que o congelamento de rendas do Estado Novo visava menos o direito à habitação e mais o controle social. Manter os portugueses longe das cidades era uma forma de conter a pressão urbana e preservar o “Portugal rural” idealizado por Salazar. Detalhes… meros detalhes....
Mas confesso: nunca imaginei ver um líder da extrema-direita portuguesa criticar um ditador como o Salazar. E bastou sugerir um teto para as rendas para isto acontecer. Antes tarde do que nunca, eu diria. Já passou da hora desta gente perceber que as ideias caducas da ditadura portuguesa não valem grande coisa.
A verdade é que a Constituição da República Portuguesa, no artigo 65.º, define muito bem: “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.” E diz mais: cabe ao Estado tomar “ações eficazes para impedir a especulação imobiliária”.
Já a Lei de Bases da Habitação (Lei n.º 83/2019) permite ao Estado requisitar imóveis devolutos, com compensação, com base na função social da propriedade. A propriedade privada pode ser limitada em nome do interesse coletivo.
Não se trata apenas de economia, é claro. É uma disputa de valores. Enquanto alguns defendem que o mercado deve ditar as regras, a Constituição insiste em reafirmar: o direito à moradia não é um luxo. Mas sim, um dever do Estado.
Estes líderes da extrema-direita portuguesa adoram falar em “inversão de valores”. E talvez tenham mesmo alguma razão. O que vemos é exatamente isso: uma inversão de valores — o mercado acima da democracia, a propriedade material acima da dignidade humana e políticos endinheirados que se acham mais franciscanos do que o próprio Papa.
Que fase.
*Diogo Batalha é redator há quase duas décadas (e desde 2015 vive em Portugal). É aracajuano desde que nasceu e detesta que não saibam onde Aracaju fica no mapa. Pai de uma pequena portuguesa, tenta achar palavras para explicar até mesmo o que ainda não consegue compreender.