Opinião. A verdade em crise: como debater quando os dados não bastam mais
Unsplash

Opinião. A verdade em crise: como debater quando os dados não bastam mais

"Estude propostas políticas. Leia mais do que apenas legendas de Instagram. Assista a mais do que apenas reels e TikToks"
Publicado a

Texto: Luísa Cunha

Podem fechar os centros de estatística. A descrença social nas instituições do Estado já bateu às portas das pesquisas, sejam elas feitas por observatórios independentes ou por gestões de governo. Há sempre um dedo em riste, apontando e semeando a desconfiança nos dados apresentados quando estes minimamente desacreditam os argumentos vazios e os gritos de revolução política de interesse próprio.

Basta uma rápida olhada nos comentários das redes, um debate à mesa com conhecidos ou uma leitura das manchetes de alguns jornais. Não existe mais o costume de debates fundados em pesquisas e estudos. A distorção do mundo chega a absurdos apenas para agradar as verdades de quem quer o mundo girando ao redor do seu umbigo.

Alguns brasileiros calejados por 2018 assistem, em pânico, à formação da mesma cena social em Portugal nas últimas dinâmicas políticas do país, como uma espécie de déjà vu de fim do mundo. E não digo que somos calejados pelos resultados das eleições em si, mas porque vimos o quanto a política de descrédito a uma cota de empirismo necessária à gestão da vida em sociedade — fornecida por meio de pesquisas, estudos e relatórios de resultados comprovados — causou uma cisão tão profunda que metade do país passou a repudiar o verde e amarelo.

Assistimos à política de descrença nos dados dividir não apenas opiniões nas urnas, mas um país inteiro, tornando impossível um convívio civilizado em uma comunidade que deveria ser pensante, isenta de seus valores e morais quando o assunto é pensar em um bem maior. Assistimos à regressão das ciências e ao achatamento da Terra, sem exageros…. tão profundo foi o efeito dominó dos comentários que, inicialmente, apenas buscavam desacreditar alguns estudos sociais e percentuais de participação nas urnas eleitorais.

Não chego tão longe a ponto de discutir a crença nos poderes Judiciário, Legislativo ou Executivo. Vá lá, nem os políticos parecem acreditar neles mesmos hoje em dia. Mas como se convive normalmente sabendo que não importa o que se apresente a quem pensa diferente de você — pesquisas, exemplos, estudos aprofundados, percentuais e dados matemáticos irrefutáveis — e, ainda assim, não se consegue levar uma conversa civilizada adiante? Como argumentar quando alguém afirma que a violência subiu em Portugal por conta das imigrações, se apresentam inúmeras provas contrárias e a resposta é simplesmente: "Mas esses dados não são verdade." Não são ou não querem que sejam?

Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!

Os dados das pesquisas a favor dos imigrantes valem tanto quanto os dados de um cassino. O problema é que, aqui, o jogo que eles gerenciam é o jogo da vida de milhares de pessoas que vivem no país.

Como debater, assumindo a essência da palavra, que implica sustentar um diálogo fundamentado, apresentando pontos de vista contrários com o objetivo de convencer o outro sobre sua perspectiva? Não existe mais terreno sólido para debates. Estamos na era da crise da verdade, uma época de leituras e audições seletivas.

Ah, podem dizer: "Vale individualizar os exemplos, apelar ao emocional." Uma estratégia de marketing de argumentos poderosa. Mas até que ponto essa prática é sustentável? Quantas vezes já não ouviu de um amigo ou conhecido português, ou até mesmo de outro imigrante: "Essas políticas de imigração não são para você", ou "Espero que você consiga ficar.", ou ainda "Você tem o direito de estar aqui." Basear a verdade na simpatia individual é um argumento perigoso e frágil. Assim como assistimos à moral social fazer uma curva à direita, quem me garante que essa estrada não fará um retorno na minha direção no momento em que eu deixar de ser conveniente?

Mas então, a grande questão…

Se o emocional e o individualismo não são o caminho...
Se os dados já não têm nenhum poder...
Se as instituições, que deveriam funcionar, já não contam com o mais importante elemento para isso: o apoio social...
Como debater, se a verdade é maleável conforme a moral individual?

Deixo aqui uma opinião polêmica: não debata. Não alimente a descrença. Não reforce o estereótipo, ainda que o sangue ferva. Ignore os comentários. Busque apoiar instituições que lutam pelas vias necessárias por aquilo em que acredita. Estude propostas políticas. Leia mais do que apenas legendas de Instagram. Assista a mais do que apenas reels e TikToks. Vamos acompanhar os debates na tv, pelo amor de deus! Acione os canais governamentais de verificação de dados e fake news ao invés de só perguntar ao chat gpt.

E, principalmente, vote. 

Exerça seu direito de resposta onde ele realmente fará a diferença e, de vez em quando, quando achar que vale a pena, deixe doses homeopáticas de algumas informações comprovadas e cause o incômodo. Plante a reflexão, não o seu ponto de vista.

*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
Opinião. A verdade em crise: como debater quando os dados não bastam mais
Opinião. Empatia seletiva
Opinião. A verdade em crise: como debater quando os dados não bastam mais
Opinião. Os ventos da extrema-direita varrem a Europa – e todos os imigrantes estão no olho do furacão
Diário de Notícias
www.dn.pt