A brasileira Camila Souza é especialista em RH e já participou de entrevistas de recrutamento em que a pessoa sequer tinha graduação nesta área.
A brasileira Camila Souza é especialista em RH e já participou de entrevistas de recrutamento em que a pessoa sequer tinha graduação nesta área.Foto: Reinaldo Rodrigues

Mercado de trabalho: brasileiros altamente qualificados enfrentam barreiras em Portugal

Com falta de trabalhadores em várias áreas, Governo quer atrair mais imigrantes com “elevadas qualificações”, mas muitos destes profissionais com este perfil estão fora da área de atuação.
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A brasileira Nathiely Oliveira, 28 anos, é formada em Enfermagem e com experiência na área. Diferente de Portugal, onde o curso é de quatro anos, a imigrante estudou cinco anos, que é o padrão das universidades brasileiras. Vivendo em Portugal há três anos, não consegue sequer validar o diploma para poder concorrer a uma vaga. Nathiely, atualmente trabalhando como garçonete, é parte de uma realidade em Portugal: brasileiras e brasileiros com elevadas qualificações acadêmicas e profissionais não conseguem trabalho em Portugal na área de formação.

Na semana passada, o relatório Mapeamento da Diáspora Científica Brasileira em Portugal mostrou que 42% dosprofissionais com “formação superior avançada” estão trabalhando fora da área. De acordo com a pesquisa, realizada durante dois anos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e apoiado pela Embaixada do Brasil em Lisboa, mais de 56% das pessoas ouvidas não conseguiu revalidar o diploma em Portugal. “Analisando a totalidade da pesquisa, observa-se uma forte relação entre a revalidação de diplomas e a inserção profissional na área de formação”, consta no relatório.

A enfermeira Nathiely procurou recomendação em grupos com outras pessoas que tentaram validar o diploma. “Ninguém havia conseguido pelo site da DGES e custa 600 euros, fiquei com medo de perder os 600 euros em vão”, conta ao DN Brasil. A outra alternativa era buscar uma universidade portuguesa para fazer a creditação das disciplinas. “Falei com várias faculdades privadas e me disseram que só aceitam 50% da minha ementa. Ou seja, eu teria de estudar mais dois anos, porém você não paga somente pelas matérias que faltam, você paga todo o semestre”, explica.A taxa mensal é aproximadamente 400 euros. Sem poder arcar com o custo agora, a imigrante decidiu suspender o processo por enquanto..

A brasileira ressalta que “sabia que no início não ia ser fácil”, mas não imaginava que seria “seria tão caro e complicado”. Para a imigrante, o custo de praticamente refazer o custo não está adequado com a realidade dos salários de Portugal. “Se precisar estudar mais, nós estudamos. Mas que ao menos seja acessível a nossa realidade no país”, pontua.

Uma reportagem recente do DN mostrou que somente na Unidade Local de Saúde de São José (ULSSJ), em Lisboa, faltam 300 profissionais de enfermagem. De acordo com um estudo do PlanApp, organismo do Estado, faltam cerca de 13.700 enfermeiras e enfermeiros no Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Outras áreas em falta são a fonoaudiologia, conhecida em Portugal como terapia de fala, que nenhuma pessoa do Brasil consegue atuar. Um grupo de profissionais instalados em Portugal já tentou até o apoio do Ministério das Relações Exteriores (MRE) em busca de ajuda para vencer a burocracia, mas não teve efeitos até agora.

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Há outros grupos de profissionais que tentam juntos superar as barreiras, como professoras e professores primários, mas a taxa de sucesso é baixa, sendo o reconhecimento do diploma um dos principais entraves. O relatório citado no início deste texto recomenda que sejam criadas políticas públicas “voltadas à redução dos custos e da burocracia, ampliação de acordos de reconhecimento automático entre instituições de ensino superior brasileiras e estrangeiras”. Outra sugestão é de “oferecimento de apoio específico para profissionais em transição de carreira ou que necessitem de complementação académica para revalidação, especialmente em áreas estratégicas como saúde, educação, engenharia e tecnologia”.

Não há dados atualizados disponíveis no site da Direção-Geral de Ensino Superior (DGES). Os últimos são de outubro de 2023, ou seja, com quase dois anos. O DN Brasil questionou a DGES sobre o assunto, mas não teve resposta. De acordo com as informações disponíveis, cidadãs e cidadãos do Brasil lideram os pedidos, com mais de 37% do total. O diploma de Medicina está no topo do ranking, seguido de Engenharia e Psicologia.

Não é só o diploma

Apesar de a questão da validação dos diplomas brasileiros ser um entrave, há profissões que o diploma não é um problema, mas as barreiras existem. Analy Magalhães tem mais de 30 anos de carreira na área de tecnologia, com um currículo que inclui altos cargos de gestão e experiência em diversos países. “Eu trabalho com TI desde quando não era moda e quando mulheres eram raríssimas na profissão. Eu nunca precisei procurar emprego na vida, as vagas sempre vinham até mim. Até chegar em Portugal”, relata ao DN Brasil.

A brasileira vive no país há quase dois anos, período em que já mandou currículo para mais de 100 vagas, mas sem sucesso. “Existem muitas vagas de começo de carreira, como eu saí do Brasil como diretora, dificulta. É um problema a minha idade, sou uma mulher com mais 50 anos, mulher, estrangeira em uma área masculina, e sem conexões”, explica. Enquanto continua na busca, a brasileira decidiu criar um grupo online de mulheres da área de tecnologia que já estão em Portugal para ajudar na procura por emprego.

Vivendo em Braga, Analy ressalta que conhece diversas pessoas do Brasil, com alta qualificação profissional, mas que estão trabalhando em outras áreas para se manter. “Um trabalha em restaurante, outro faz transporte, outro é TVDE, todo mundo vai se virando”, relata. Com três décadas de experiência em gestão e tecnologia, a brasileira acredita que Portugal precisa de evolução nesta área, em especial na Agência para Integração, Migrações e Asilo (AIMA). “Eu vejo com olhar de gestão e tecnologia. Na AIMA, quando fui fazer a entrevista, vi a demora para escanear páginas. É uma página a cada 40 segundos, eu estava agoniada. E, na verdade, nem deveria ser preciso, o ideal era podermos enviar tudo antes digitalmente. Eu brinco com os meus conhecidos que queria trabalhar de graça pra AIMA”, destaca.

Sem chance em concursos

A brasileira Monica Cristina Rovaris Machado enfrenta o mesmo problema. Com décadas de docência universitária, doutorado em gestão e experiência em diversas grandes universidades do Brasil, não consegue emprego em Portugal. Por vir de um curso de nota máxima da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o reconhecimento do diploma foi rápido. Já a busca por emprego dura quase seis anos.

A brasileira foi tentando um clássico da vida de imigrante: tirar qualificações do currículo para ver se ao menos era chamada para entrevista, mas não deu certo. “Em alguns concursos que tentei quem ganhou era uma pessoa só com graduação, mas uma pessoa portuguesa, é revoltante, por isso, fui desistindo dos processos”, conta a doutora. Mônica relata que foi estudar o mercado de trabalho de Portugal desde a década de 1980 para tentar entender a dinâmica. “É um histórico de como se trata imigrante, não é uma coisa que é de hoje, que é de agora, já é uma coisa de 30 anos, além da desvalorização geral nos salários”, explica a docente.

A brasileira diz que se sente “frustrada”, mas que não romantiza a realidade. “Eu acho que às vezes os brasileiros quando vem pra cá é romantizar o que vai encontrar aqui, aquela questão de falarmos a mesma língua e tal, mas não é assim”, avalia. Este fator e outros levaram Monica a mudar com a família para a Espanha em breve.

Na visão da professora, a falta de valorização da mão de obra altamente qualificada que vem do Brasil é uma perda para Portugal. “Eu acho que Portugal perde quando não incorpora os imigrantes, quando ele não olha essa diversidade. O que é que ele pode trazer para essa sociedade, o que esse imigrante, qualquer um, o que esse imigrante pode trazer para essa sociedade que ela possa realmente avançar para o futuro, sabe?”, reflete.

Esta mesma posição consta no relatório Mapeamento da Diáspora Científica Brasileira em Portugal. “Profissionais especializados que atuam fora de suas áreas representam uma perda potencial tanto para os países de origem (por meio do chamado brain drain) quanto para os de destino, que deixam de se beneficiar plenamente da qualificação desses indivíduos”, pontuam.

Desafios

Camila Souza é formada em Gestão de Recursos Humanos e pós-graduada em Psicologia Organizacional e do Trabalho, com uma década de experiência como recrutadora. Em Portugal, conseguiu emprego na área, mas decidiu empreender como mentora de carreiras. “O que eu percebo é um conceito intencional e eurocentrado, obviamente, de desqualificação, tanto da experiência quanto da formação das pessoas que se formaram e criaram sua trajetória profissional no sul global. Isso vale para o Brasil como para países africanos. E eu falo não só pela minha experiência, mas também pela história das minhas clientes”, relata ao jornal.

A brasileira já participou de entrevistas em que a pessoa que a estava entrevistando sequer tinha formação na área de Recursos Humanos. “Nas entrevistas, a pessoa que entrevista, vai atrás de alguma informação para confirmar aquilo que ela tem predisposição a acreditar, que é, migrantes do Sul Global não são qualificados. Então, mesmo que eu, Camila, em uma profissão de RH que não é regulamentada, porque me questionar se o meu diploma é reconhecido?”, destaca.

A brasileira atende mulheres brasileiras que estão tentando trabalhar em Portugal e outros países no exterior. “O meu trabalho é ajudá-las a evidenciarem a formação, as competências, aquilo que elas sabem fazer, exemplos de sucesso na trajetória, um bom Linkedin. E o preconceito? A gente transfere para eles”, salienta. “Se eles vão levar mais em consideração o lugar que a gente nasceu, onde a formação ou a experiência foi feita, isso é com eles. Eles vão ter que arrumar argumentos para isso”, complementa.

Sobre a medida do Governo em querer atrair profissionais altamente qualificados, a especialista analisa que o mercado português não está preparado. “Primeiro porque existe essa predisposição, esse preconceito, essa xenofobia que cria a barreira invisível, mas que dá para sentir. Depois, não adianta abrir para altamente qualificados se aqui eles não nos valorizam e acham que não é bom, que não é suficiente a formação de pessoas que vêm desses países”, aponta.

amanda.lima@dn.pt

Esta reportagem está publicada na edição impressa do Diário de Notícias desta segunda-feira, dia 07 de julho de 2025.
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