Integração: projeto de brasileira eterniza memórias de moradores da Cova do Vapor
"Querida amiga Luiza, foi uma mulher que nos fez ver a vida diferente, fez a fogueira e como nunca tínhamos visto uma coisa assim foi uma coisa muito bonita, fez com que eu fosse ao Bugio, que há 50 anos eu tinha essa vontade”. Este é o trecho da carta da portuguesa Maria do Socorro, em agradecimento à brasileira Luiza Baldan, que criou um projeto na Cova do Vapor, na região de Almada. Para quem olha de Lisboa, fica perto dos altos silos que podem ser avistados de longe.
Como Olhar Junto é um projeto multidisciplinar realizado nos últimos dois anos, com o lançamento de um livro (Fotô Editorial, 168 páginas), uma peça de áudio e de um filme. Mas é, acima de tudo, sobre integração, sobre ouvir a sabedoria dos idosos portugueses e eternizar estas memórias, como a das casas ribeirinhas sendo transportadas manualmente para fugir do avanço do mar há algumas décadas. Uma das fotos do livro mostra seis moradores puxando uma das casas, prática comum nesta região e que aconteceu dezenas de vezes. A obra é uma linha do tempo sem começo e fim, que cruza diversos momentos deste moradores e da própria autora, que vê na Cova do Vapor semelhanças com Cabo Frio, onde cresceu.
“Quando cheguei na Cova do Vapor, vi aquela paisagem que dá um tapa na cara, mexeu ali alguma coisa”, conta ao DN Brasil a imigrante. O que começou com uma curiosidade, se transformou em mais um projeto da artista, que é também pesquisadora e possui um extenso currículo de prêmios internacionais. No entanto, para Luiza, o mais importante de Como Olhar Junto foi a relação que construiu com dona Socorro, com dona Manuela, Eduardo e outros personagens da Cova do Vapor, como a dona Belmira, que faleceu antes de ver o projeto pronto e não conseguiu ver a sua foto impressa no livro.
Uma das muitas atividades foi a escolha de um lugar especial para que Luiza tirasse uma foto - todas estão no livro lançado ontem na comunidade da Cova do Vapor. Para dona Manuela e dona Socorro, alguns dos momentos mais memoráveis foi o passeio de barco até o forte de São Lourenço do Bugio, onde o rio Tejo encontra o oceano Atlântico.
Outro destes momentos, mostrados no filme, é de uma fogueira realizada na praia no fim da tarde, em que cada participante leu os nomes de pessoas que viviam ou viveram na localidade. “Foi um momento tão bonito”, recorda dona Manuela. O DN Brasil estava com as portuguesas quando viram o livro pronto pela primeira vez e emocionaram-se com as fotos, cartas e histórias na obra, que será lançada no Brasil e no Chile.
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Segundo a brasileira, é preciso valorizar o que chama de “histórias fora das grandes narrativas” e que são ouvidas com a convivência atenta. Foram incontáveis vezes que Luiza pegou o barco e depois pedalou até a Cova do Vapor para estar com as moradoras, nos inúmeros convívios e momentos que compartilharam - motivando também as idosas a sairem mais de casa e estarem mais ativas. “É ir além das grandes narrativas, existe uma coisa das memórias e da vida que se partilha, de um conhecimento como andar com elas pra ir à praia, a dona Socorro vai no caminho, recolhendo as plantas que ela vai cozinhar depois,no mesmo local que as pessoas estacionam o carro e nunca olham”, reflete a artista brasileira.
Eduardo Gomes, investigador e coordenador da biblioteca local - onde os encontros começaram, analisa que este tipo de interação mostra “o que vai além da cortina de fumo” sobre o momento da imigração em Portugal. “Uma parte do povo acaba por levar entranhar essa narrativa é porque há objetivos políticos nisso. Mas aqui não, e há muitos portugueses assim, que não querem divisões, queremos união”, explica Eduardo. A Cova do Vapor, em especial a biblioteca, já teve outras pessoas do Brasil que realizaram projetos com a comunidade. Neste momento, a biblioteca foi fechada “por decisão unilateral”, mas os moradores estão em busca de uma alternativa para manter os livros disponíveis. O projeto de Luiza foi realizado com “recursos mínimos” e contou com a colaboração de muitas pessoas que acreditaram na iniciativa.
E como as moradoras se sentem com os resultados do projeto? As palavras variam entre “orgulho”, “alegria” e até “vaidade”, rindo timidamente ao ver uma foto de maiô na praia estampada no livro. Outra palavra que surgiu na entrevista é esperança. “Enquanto há vida há esperança”.
amanda.lima@dn.pt