Viviane Rodrigues, diretora do filme, concedeu entrevista ao DN Brasil.
Viviane Rodrigues, diretora do filme, concedeu entrevista ao DN Brasil.Raoni Beltrão

Documentário de brasileira que debate o silêncio colonial português concorre em festival nacional

Dirigido por Viviane Rodrigues, filme que está em competição em festival da Filmin até sábado (18), propõe uma reflexão sobre o apagamento histórico e o racismo estrutural na sociedade portuguesa.
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Questionar a forma como Portugal lida — ou prefere não lidar — com o seu passado colonial e a herança da escravidão é o ponto de partida do recém-lançado documentário Não são águas passadas. Dirigido pela paraense radicada em Lisboa, Viviane Rodrigues, o filme está em competição no festival Revoluções Curtas, da Filmin Portugal, até o próximo sábado (18), com a escolha pelo vencedor a ser definida através do voto popular.

De acordo com Viviane, em Lisboa há três anos, o documentário nasceu da necessidade de olhar criticamente para os símbolos e discursos que moldam o imaginário português. “Quando se lê nos livros de história que a primeira venda de pessoas escravizadas da história foi em Lagos, [no Algarve], impressiona como em Portugal não se fala isso diretamente", conta a cineasta em entrevista ao DN Brasil.

"A solução é falar do período do colonialismo como expansão marítima: é quase como se o período da escravatura e tudo o que aconteceu fosse um efeito colateral para o progresso do planeta naquele momento", sublinha.

A crítica ao silenciamento português acerca das primeiras embarcações de tráfico negreiro em solo europeu no início do século XV é feita logo na primeira cena do filme, através do narrador togolês Naky Gaglo, também residente em Lisboa. Criador do projeto African Lisbon Tour, que guia visitantes por locais emblemáticos ligados ao tráfico negreiro e à presença africana na formação da capital portuguesa, ele foi o escolhido por Viviane para ser o fio condutor da curta de 19 minutos.

Cena do documentário.
Cena do documentário.DR

Em meio a caminhadas por terra e pelo mar, Gaglo revela uma memória coletiva por parte dos portugueses marcada por silêncios e romantizações do período colonial. “Eu já conhecia um pouco do projeto do Naky, que é o African Lisbon Tour. Sabia que ele tem um trabalho muito bacana de mostrar a cidade e falar dessa Portugal que depende das mãos africanas desde muito tempo atrás, mas que isso é invisível na geografia e na história daqui”, conta a diretora, natural de Belém (PA), mas com 15 anos de bagagem em São Paulo, onde fundou uma produtora antes de se mudar para Portugal em 2022.

Segundo a cineasta, a mudança foi tanto por um recomeço profissional quanto de segurança pessoal, pelo momento de instabilidade política que o Brasil atravessava àquela época. “A mudança foi sobretudo porque estava muito inóspito viver de cultura no Brasil, mas também pelo fato de sermos uma família interracial. Meu marido e minha filha são pessoas negras, e a gente estava vivendo um tempo de muito medo morando lá”.

A adaptação para um mercado menor, e no qual brasileiros tem tentado assumir novas rédeas no audiovisual, trouxe novos desafios, não só pelo tamanho, mas também por este isolamento imposto aos imigrantes. “Furar a bolha é muito difícil. E ainda mais sendo uma pessoa do Sul Global. Se eu fosse dos Estados Unidos ou da União Europeia, talvez eu teria outros olhares direcionados para mim. Não seria imigrante, seria estrangeira”.

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Foi durante um curso na escola Ar.Co, em Lisboa, que surgiu a ideia do filme que agora está em exibição na Filmin. A diretora transformou uma pesquisa acadêmica em um projeto audiovisual e começou a filmar de forma independente, tendo o apoio de cerca de dez pessoas.

Paraense está em Lisboa desde 2022.
Paraense está em Lisboa desde 2022.Raoni Beltrão

Durante o processo de criação, a diretora mergulhou nos roteiros turísticos oficiais e institucionais de Gaglo, refletindo sobre estes contrastes profundos entre a narrativa estatal e as vozes que buscam resgatar a memória africana no país. O resultado do trabalho é um filme que propõe um debate histórico, político e humano sobre a identidade portuguesa e a persistência do racismo, a partir também da perspectiva de pessoas brancas.

“Falar sobre o racismo é sim um trabalho branco. Eu não falo pelas pessoas, mas acho que discutir o que a gente causou faz parte da coletividade das pessoas brancas. O filme é uma tentativa de trazer esse tema para a pauta social, sem extremos, mas com honestidade", explica.

Cultura como ferramenta de transformação social

Além de refletir sobre o passado em Não são águas passadas, Viviane também reflete sobre as desigualdades do presente no país. Uma delas, e que refere ao jornal, aconteceu com sua filha, vítima de discriminação racial em Portugal, cujo processo foi arquivado pela justiça.

“Ela foi perseguida, acusada de ter roubado o cartão de um homem belga. Entramos na justiça e chegou uma hora que eu desisti. Aqui o racismo não é crime, e é muito triste ver que, se não se fala sobre isso, não existe. É como se não houvesse raça — e se não há raça, não há racismo”, pontua.

Para a diretora, filmes como Não são Águas Passadas podem e devem configurar um ato educativo, uma ferramenta de transformação social. Na sociedade portuguesa, um papel preponderante que a arte deve desempenhar, embora as reflexões e ensinos devam vir também do programa educativo do país.

A mudança tem que começar pelos manuais escolares. É ali que se forma a próxima geração com um olhar crítico. Não é apagar nenhuma parte, mas também não é negar outra. A arte e a educação fazem esse papel — de refletir e provocar sem expor ainda mais quem já sofre", assinala.

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A mostra Revoluções Curtas, da Filmin, onde é exibido o documentário de Viviane, fica em cartaz até o próximo sábado (18). Para votar na produção da imigrante brasileira — disponível neste linko público deve assistir ao filme e, posteriormente, deixar uma avaliação na plataforma (a nota de corte é de sete pontos em dez). O vencedor do Júri Popular é selecionado para um festival na Espanha.

Monumento dos Padrões dos Descobrimentos, em Belém.
Monumento dos Padrões dos Descobrimentos, em Belém.DR.

“Eu espero que o filme seja mais uma ferramenta para que a gente olhe para as estátuas e monumentos com o olhar crítico que se deve ter. Não digo destruir nada, mas entender que o Padrão dos Descobrimentos não é só uma beleza em si. É uma história que precisa ser contada por inteiro”, finaliza a brasileira.

nuno.tibirica@dn.pt

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