Gerar empregos, produzir filmes e, principalmente, “ser o ponto de encontro para todos os brasileiros imigrantes do audiovisual em Portugal” são os motes da Imigratoria - assim mesmo, sem acento - um coletivo-produtora criado há um ano e que já reúne quase cem imigrantes profissionais do meio no país. Mais do que uma estrutura de produção, trata-se de um espaço de trabalho, criação e circulação para quem decidiu viver da arte mesmo fora do Brasil.Nascida de reuniões caseiras e microfilmes feitos com pouco ou nada de recursos, a Imigratoria rapidamente se tornou uma rede que hoje congrega brasileiros espalhados por Lisboa, outras cidades portuguesas e até outros países europeus. O objetivo é dinamizar a entrada de imigrantes no mercado audiovisual, produzir ficção e documentário com DNA de diáspora e criar um ecossistema onde as oportunidades sejam menos raras no concorrido e precarizado ramo.“Eu queria que fosse uma produtora, mas não uma produtora normal, com equipe pequena e fechada”, diz Juliana Calejan, roteirista natural de São Paulo radicada em Lisboa desde 2017 e criadora do coletivo. “O que a gente quer é se fortalecer na força da comunidade, do coletivo”, frisa Juliana em entrevista concedida ao DN Brasil..Formada em Rádio e TV e com anos de publicidade na bagagem, a imigrante paulista desembarcou em Lisboa em 2017, num primeiro momento para tirar a cidadania portuguesa (a mãe é açoriana) e dedicar um ano à ficção. O período rendeu o primeiro longa roteirizado por ela, 'Amo-te Imenso' (Hermano Moreira, 2021), produzido depois da pandemia e exibido posteriormente na HBO Max e TV Cine. “Foi o meu início na ficção e acabou sendo o começo da minha trajetória nas produções também em Portugal”, relembra.Ficar virou decisão concreta após quatro anos de idas e vindas. Com o tempo, o confronto com um mercado pequeno e competitivo por cá, onde a origem e o foco do trabalho pesam, começou a transparecer cada vez mais. “É difícil vender uma narrativa imigrante tanto para Portugal quanto para o Brasil, ainda mais sendo você mesmo uma pessoa de fora", explica. “A maioria das pessoas que eu conhecia sofria muito, o mercado é pequeno e fica difícil concorrer com que já está aqui.”A solução da roteirista foi organizar uma mobilização entre os imigrantes profissionais do setor em Portugal. Juliana então reuniu um grupo de 15 a 20 amigos do audiovisual, colocou um site no ar e propôs encontros semanais para pensar filmes possíveis entre eles e dinamizar ofertas laborais que íam surgindo. Desde então, desta colaboração hoje chamada Imigratoria, "um coletivo-produtora", como define Juliana, nasceram microfilmes, uma rede de talentos para buscar profissionais por função no país e um grupo ativo no Whatsapp onde os membros trocam vagas e se ajudam no cotidiano. Um processo que tem dado frutos, diz com orgulho Juliana ao falar do que tem sido feito internamente desde então. “Muitas pessoas já estavam desiludidas com a dificuldade de se inserir no mercado do audiovisual por aqui, isso sem contar as que foram embora de volta por Brasil. Muita gente me falou que estava indo virar motorista de Uber, ir para outros ramos, trabalhar com serviços. Na prática e até no sentimento de resistência, a Imigratoria fez as pessoas pensarem: ‘Não, essa aqui é a minha profissão, não estou sozinho’”, sublinha. Mais do que essas resolver questões práticas, a Imigratoria tenta afirmar uma identidade coletiva. O grupo se organiza como um espaço de partilha, onde o pertencimento é tão importante quanto a realização de projetos. “Quem entende a nossa arte é o imigrante”, resume Juliana. “É ele que conhece a luta de estar num outro país e tentar se afirmar mesmo com todas as dificuldades”, ressalta.A proposta para 2026 é negociar com produtoras portuguesas a reserva de vagas — e estágios quando fizer sentido — em publicidade, séries e longas. “Quero colocar o brasileiro no mercado de trabalho português”, diz Juliana. “Chegar numa produtora e dizer: você vai rodar uma publicidade? Pode considerar duas vagas para pessoas da Imigratoria?”, explica, ressaltando que, além das pontes locais, o coletivo quer sensibilizar marcas e instituições brasileiras — inclusive na CPLP — para apoios anuais e editais que garantam continuidade.Entrou em pauta para o futuro próximo até a organização de um festival. O Festival de Cinema Imigratoria entrou no radar para Lisboa, com regulamento e site prontos, mas foi adiado para 2026 após a reestruturação da Casa do Comum, parceira que agora está previsto para maio do ano que vem, com trabalhos feitos por brasileiros e focados em narrativas de imigrantes. 'Culpadas': a primeira produção do coletivoAo mesmo tempo que cresce enquanto grupo, o grupo começou a desenhar a serie 'Culpadas', primeira produção da Imigratoria. A história ronda quatro brasileiras, sem dinheiro, que montam um delivery clandestino de produtos do Brasil em Lisboa e acabam sob suspeita de um crime. “Nós já fizemos uma sala de roteiro com seis roteiristas. São seis episódios de 20 minutos”, detalha Juliana, que é a showrunner da série que já está estruturada com atores, quatro produtores e dois diretores.A serie está em pré-produção, com rodagem marcada para dezembro e captação de recursos em curso - doações, parcerias, patrocínios e até uma campanha no GoFundMe, que até agora já arrecadou mais de 1400 euros. A composição da equipe também é um manifesto: “Nossa meta é ter uma equipe 100% brasileira imigrante”, com prioridade para mulheres, assinala Juliana.Para ela, a comunidade brasileira em Portugal aparece como público e força produtiva para dar visibilidade ao trabalho que virá a ser feito pelo coletivo. “Eu não preciso de Portugal inteiro”, diz. “Se eu tiver esses 600, 700 mil brasileiros consumindo, a gente tem um poder gigante aqui mesmo estando fora do Brasil.”Por trás do discurso, a Imigratoria, segundo a cineasta, também é caracterizada por uma ética que rejeita o desgaste naturalizado da indústria audiovisual, seja em Portugal, no Brasil ou em qualquer parte do mundo. A ideia é levar o meio para um caminho "mais leve". “Por que eu preciso fazer uma diária de 14 horas? Será que a gente não consegue fazer de 10 [horas] e todo mundo ser mais feliz? Eu acho que é possível fazer arte sem essa maneiro do streaming, por exemplo, querendo te engolir: queremos trabalhar de um jeito horizontal, onde as pessoas tenham oportunidades.”Se a indústria é pequena e o funil estreito, o coletivo vai alargando a entrada com as ferramentas que tem: rede, formação de equipe, negociação de vagas e um plano de produção que se mede por empregos criados. O sentimento agora é de orgulho e confiança de quem já viu a energia do grupo transformar desistências em expectativa por novos projetos e estreias nas telinhas ou telonas. “Acho que é muito bonito o que nós estamos enquanto coletivo”, diz Juliana. Além de bonito, necessário, não só para os quase cem profissionais já associados ao coletivo, mas ainda para tantos outros que podem ver na Imigratoria uma porta aberta para concretizar os sonhos cinematográficos no outro lado do Atlântico.nuno.tibirica@dn.pt.Este texto está publicado na edição impressa do Diário de Notícias desta segunda-feira, 22 de setembro de 2025..O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil..Brasileiros iniciam rodagem de série que satiriza os absurdos do mercado imobiliário em Lisboa.Brasileiro à frente de coprodução luso-brasileira, Fernando Muniz roda primeiro longa em Portugal