"Só voltei a andar de trem já adulta, em viagem pela Europa. Mas o transporte sempre me remete à cena da infância, à memória materna com um misto de aventura e curiosidade".
"Só voltei a andar de trem já adulta, em viagem pela Europa. Mas o transporte sempre me remete à cena da infância, à memória materna com um misto de aventura e curiosidade".Foto: Paulo Spranger

Crônica. Histórias de estação

No pequeno vagão de janelas cerradas por dentro, lembrei-me da primeira vez que andei de trem na minha terra. Era um pequeno roteiro entre cidades, fui acompanhada da minha mãe e de outros colegas do colégio.
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Texto: Cristina Fontenele*

Sob um verão escaldante na estação de comboio, um senhor nos saúda atraído por nosso sotaque: “Olá! São de que lugar do Brasil?”. Eu e minha amiga voltávamos de umas horinhas de passeio em Águeda quando o homem nos interpelou para contar sua história de vida. Em minutos, fomos transportadas para um passado de amor e migração.

Após breves cumprimentos, o senhor nos disse que morou em três cidades do Brasil - Recife, São Paulo, Porto Alegre - emigrou por trabalho, casou-se com uma brasileira e, anos depois, retornou para Águeda com a esposa, que já faleceu há um tempo. “Está sepultada aqui”, revelou.

Dali a pouco, um velho amigo desse homem juntou-se à prosa para endossar os fatos e estabeleceu um diálogo espontâneo, típico de pessoas que vivem em cidades pequenas e conhecem toda a gente. Sabem o nome do padeiro, dos funcionários do restaurante, tomam café no mesmo local há décadas e percebem a genealogia dos moradores da região. Pessoas acessíveis, que se aproximam com simplicidade e quando damos conta forma-se uma roda de conversa a evocar os tempos de antigamente e a nos fazer sentir parte de algo.

Só não prolongamos o falatório porque ainda era preciso atravessar a passagem para tomar o comboio que logo iria chegar - um trecho de madeira escura rente aos trilhos coloridos da simpática estação. Além disso, o mormaço estava implacável e eu só desejava uma mangueira com água jorrando para o céu com as gotas a cair sobre nossos calores.

A visita a Águeda foi rápida diante dos 36 graus de uma manhã sem vento. No percurso, cruzamos com vários turistas franceses, admiramos o centro histórico, o artesanato local, as esculturas de flores, intervenções artísticas nos muros e os guarda-chuvas suspensos cujo colorido também se refletia no chão das ruas. É o chamado Umbrella Sky Project, que surgiu em 2012 na cidade e é responsável por criar um impacto visual que atrai visitantes e dinamiza o comércio local.

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No meio da tarde, embarcamos de volta no pequeno trem para Aveiro, onde eu passava uns dias na casa da amiga. O comboio de três vagões antigos, totalmente grafitado por fora, perfaz uma parte da linha do Vouga, ligando Aveiro a Sernada do Vouga. No pequeno vagão de janelas cerradas por dentro, lembrei-me da primeira vez que andei de trem na minha terra. Era um pequeno roteiro entre cidades, fui acompanhada da minha mãe e de outros colegas do colégio. Alguns iam sentados, outros em pé a se equilibrar entre as freadas bruscas a cada paragem.

Só voltei a andar de trem já adulta, em viagem pela Europa. Mas o transporte sempre me remete à cena da infância, à memória materna com um misto de aventura e curiosidade.

Naquela segunda abafada, enquanto viajava pelas lembranças, percebi dois senhores no vagão trocando números de telefone. Aparentavam mais de 70 anos, um deles registrou o próprio contato no celular do velho conhecido, um modelo básico fabricado apenas para o uso principal: ligações. “Agora, ficas com o meu número registado. Vou ligar, mas não vou atender que é para não gastares”, disse ao completar a operação.

A cena fez jus ao ambiente retrô de bancos vermelhos e à barulheira do comboio que parava nas pequenas estações de precária estrutura de tijolos ou madeira. Um espaço mínimo para abrigar no máximo três passageiros. Quando a carruagem abria as portas, entrava uma lufada de ar quente que nos ajudava a recuperar o fôlego dentro da sauna. Depois, o comboio arrancava com as portas ainda a fechar pelo caminho, espelhando um sistema rudimentar.

A viagem foi curta, mas poderia dizer analógica, onde passear com uma amiga, conversar com desconhecidos, olhar para o céu e receber chamadas ao telefone ainda têm lugar no nosso tempo.

*Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
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