"Nascer em região costeira nos induz a pensar na praia como destino garantido".
"Nascer em região costeira nos induz a pensar na praia como destino garantido".Foto: Reinaldo Rodrigues

Crônica. A praia como casa

"Nesse verão, tenho pisado na areia como quem revisita memórias, pulado as ondas como quem se banha nos afetos".
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Texto: Cristina Fontenele*

“Olha a bola de Berlim”, anunciou o homem de camiseta branca segurando um isopor em cada mão. “Está dois euros, tem com e sem creme”, completou o vendedor, enquanto eu e minha amiga desfrutávamos do sol e mar de Aveiro. Ali se apresentava uma experiência típica das praias portuguesas, lembrança de muitas crianças. “Só sabe bem na praia”, me revelou certa vez uma colega lisboeta que diz nunca ter comprado a iguaria fora do contexto.

Nas praias cearenses somos mais acostumados ao sabor salgado - caranguejo, camarão seco, milho cozido, queijo assado - acompanhado de uma tradicional água de coco. Diferente também é frequentar um areal no qual levamos nosso próprio guarda-sol, bebidas e alimentos. 

Cresci em um litoral com amplas estruturas de barracas, restaurantes, coqueirais e até música ao vivo à beira-mar. Experimentar o oposto foi em primeiro momento desafiador, depois interessante. Sem mencionar a água gelada que requer um trabalho mental de convencimento e coragem. Mas depois que nos habituamos, é outra forma de sentir o ambiente, a natureza e até de se relacionar com quem nos acompanha. Após o banho fresquinho, saímos rejuvenescidos.

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Fincar o guarda-sol na areia, estender a toalha e cuidar do nosso metro quadrado por algumas horas traz mais consciência do espaço que ocupamos e senso de coletividade. É curioso observar a forma como cada um vive sua praia.

Há a turma dos assados ao forno (curtem horas de bronze sem medo do amanhã), os que praticam esportes, aqueles que levam as estruturas laterais de corta-vento (em alguns casos uma demarcação ostensiva de terreno), os que não saem da água, quem prefere ler, outros que dormem quase o dia inteiro, aqueles que garantem um banquete particular.

Nascer em região costeira nos induz a pensar na praia como destino garantido. Foi o que aconteceu comigo quando morei em Minas Gerais e em uma manhã acordei com vontade de banho de mar e caranguejo. Ao me dar conta da impossibilidade do desejo, senti grande nostalgia e passei a valorizar aquilo que já não tinha. Percebi, então, como sol e mar fazem parte de quem sou. 

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Há umas semanas fui à praia com outras amigas e, enquanto nos refrescávamos no mar, uma delas me disse: “Ah, mas você cresceu na praia”. A afirmação veio como resposta à habilidade de lançar um jato de água apertando as mãos com força e velocidade. Não sou perita no assunto e pensei em negar. 

Mas, de repente, voltei às memórias do banho de mar na infância, dos caldos que levei das ondas, das vezes que a maré subiu e fiquei sem chão, das longas caminhadas ao final da tarde, das conchas apanhadas que decoraram uma parede de casa, das queimaduras com água-viva, de tirar água salgada do ouvido, da pesca de camarão à noite, do jardim de algas na areia, de andar sobre as pedras na maré baixa, das férias na praia com amigos, dos episódios de insolação e da imensa alegria após horas dentro do mar.

Era também rotina passar fins de semana e férias em Paracuru, litoral cearense de famoso Carnaval, onde meus pais se conheceram jogando vôlei na areia. A vida de ambas as famílias é marcada por esse território até os dias de hoje. O mar atravessou nossas histórias. E continua a fazê-lo.

Nesse verão, tenho pisado na areia como quem revisita memórias, pulado as ondas como quem se banha nos afetos. Deixado o vento soprar os timbres que ainda escuto em cada parte do corpo a dizer que a praia é também casa e aconchego.

*Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
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