Foi em 2015 que Clara Bevilaqua e Gui Calegari desembarcaram em Lisboa com uma mala cheia de inquietações artísticas e a convicção de que a educação e a arte andam lado a lado. Uma década depois, os dois mineiros transformaram essa convicção em um projeto sólido: a associação cultural Baileia, hoje referência no cruzamento entre artes performáticas e educação em Portugal. A história começou um pouco antes da mudança da dupla para o outro lado do Atlântico. Em 2014, em Uberlândia, no estado de Minas Gerais, os dois criaram o espetáculo Conversas de Corpo, primeira colaboração entre eles e ponto de partida para a filosofia que se tornaria a marca da Baileia. “O espetáculo deu o start do que pode ser a filosofia de trabalho da Baileia, que é considerar as pessoas nos primeiros anos de vida no mundo. A Baileia nasce desta continuiade de encontros, espaços e afetos e nasceu com o apoio do Coletivo Lagoa, parceiro na cocriação dos espectáculos Junto (2018) e Com a casa às costas (2020-2022)”, diz Clara, que agora, ao lado de Gui e com um apoio da Direção-Geral das Artes (DGArtes), se prepara para levar o espetáculo de volta ao lugar onde nasceu em setembro: o Brasil.Idas e vindasDepois de 2014, o espetáculo atravessou fronteiras e cresceu em terras portuguesas, assim como a associação. Foi no Centro em Movimento (CEM), em Lisboa, que a dupla encontrou espaço para experimentar, testar linguagens e criar em continuidade o projeto que desenvolviam desde antes da mudança, mas que se concretizou por aqui. “Vir para Portugal parece que ajudou a Baileia a crescer com o tempo. Esse tempo dilatado fez com que a gente pudesse olhar para cada especificidade do nosso trabalho e articular devagarinho, mas articulando sem perder a multiplicidade. A ideia de brincar, quase sempre relegada ao lugar do supérfluo, se tornou fundamento da prática artística da Baileia. Para a dupla de artistas, o ato de brincar é motor de criação, pesquisa e resistência. “Uma pensadora brasileira, Lydia Hortélio, fala que talvez falte no mundo a revolução do brincar. E eu concordo. Mas só o dia em que todas as crianças do mundo forem livres para brincar, seja aqui em Portugal, na Palestina ou no Brasil”, reflete Clara.Essa visão atravessa os espetáculos e oficinas desenvolvidos pelo coletivo. Não se trata apenas de montar peças para crianças, mas de criar experiências onde elas são consideradas sujeitos plenos. “O artista é ampliado pela educação e a educação é ampliada pela arte. A gente acha muito difícil dissociar uma coisa da outra”, resume Gui.Dentre as disciplinas artísticas, a linguagem da Baileia cruza dança, música, teatro e manualidades. O trabalho não se limita aos palcos tradicionais: sem uma sede física - normalmente usam as próprias instalações do CEM - a Baileia está presente em escolas, bibliotecas, ruas, jardins, museus e creches, especialmente de Lisboa e arredores, mas também já cruzou todo o país. Para os artistas, o que importa é o encontro com a infância: encontros muitas vezes pequenos e discretos, mas que se tornam motores da pesquisa e criação do casal, parceiros dentro e fora de palcos e espaços educativos. Gui reforça a ideia de Clara de que Portugal deu a estabilidade para a associação se consolidar. “Aqui tivemos tempo e qualidade para experienciar diferenças na forma como se estrutura o trabalho artístico e educacional. Não chegamos só com a cara e a coragem: fomos tateando, trabalhando com pessoas, entendendo para poder nos estabelecer”, explica o imigrante.Trabalhar com cultura em PortugalA experiência de ser imigrante em Portugal deu outra dimensão ao trabalho. A cada oficina, a cada espetáculo, a dupla dialoga com famílias de diferentes origens - não só portuguesas e brasileiras, mas também nepalesas, cabo-verdianas, chinesas. Essa convivência reforça a convicção de que a multiculturalidade é um caminho inevitável e necessário na vida, na educação e na arte.Gui destaca que a Baileia, mesmo sendo fundada por brasileiros - inclusive os outros membros - nunca se restringiu a trabalhar apenas com imigrantes da mesma origem. “O público com quem a gente trabalha é muito diverso. Em uma sala de 20 crianças, às vezes três são brasileiras. No mais a gente vai dialogar com muitas culturas. E trrabalhar com infância e família amplia esse diálogo e evita que a gente fique apenas numa esfera. É um trabalho que naturalmente nos coloca em contato com o diverso”, sublinha.“É como se os portugueses estivessem confiando a educação dos filhos a brasileiros. E isso é um gesto muito potente. Conquista-se espaço e abre-se caminho para que outras pessoas possam também fazê-lo”, complementa o brasileiro.Um episódio vivido pela dupla e contado por Clara ilustra esse simbolismo. “Estávamos numa temporada no Centro Cultural de Belém (CCB) e recebíamos uma escola da Costa da Caparica. No final, uma menina me perguntou: ‘Você é brasileira mesmo? Então tem como ser brasileira e trabalhar aqui?’, se referindo a grandiosidade daquele edifício. Aquilo me atravessou. É sobre mostrar que sim, é possível."Temporada no BrasilOficializada em 2023, mas existente desde 2016, a Baileia já realizou uma série de criações e colaborações. Entre elas estão Junto (2018), Com a casa às costas (2020-2022), Será Sereia? (2021), Caixinha de Danças (2022), Passa eu Passarinho (2023) e Histórias com o céu às costas (2024). Todos esses trabalhos partem da mesma filosofia: a arte como forma de conhecimento e a infância como presença ativa no mundo. “O nosso trabalho é dialógico. Não é sobre uma quarta parede fechada, mas sobre encontros em que quem fala e quem escuta se influenciam. As crianças aqui são galvanizadas por essa brasilidade que carregamos, e tentamos sempre friccionar isso: não é sobre fincar uma bandeira, mas também não deixar de ser quem somos”, observa o imigrante..Em setembro, a Baileia retorna ao Brasil com o apoio da DGArtes para uma temporada comemorativa dos dez anos de Conversas de Corpo. O espetáculo, que já realizou 72 sessões em Portugal, será apresentado em Uberlândia, no festival Paralela de Dança, e volta ao palco onde estreou há uma década. “É uma grande alegria poder devolver ao Brasil aquilo que descobrimos e reinventamos em Portugal”, afirma Clara.A viagem terá ainda um ponto alto em São Paulo: a participação no evento Chão das Infâncias, na Casa de Francisca, ao lado dos Barbatuques e do coletivo Mundo Aflora. Desta vez, a Baileia leva também Histórias com o céu às costas, obra recente em que Clara dança com três bolas gigantes.O brasileiro considera simbólico esse movimento de ida e volta. “Em tempos de tão pouca longevidade dos espetáculos, é surpreendente ver que Conversas de Corpo continua a circular e a ser procurado. Poder voltar com ele ao Brasil, dez anos depois, é reafirmar a permanência da obra e sua potência no presente.”Enquanto preparam a mala para o Brasil, Clara e Gui seguem em Lisboa com oficinas regulares no CEM e parcerias com escolas e creches. A Baileia, dizem, é mais que uma estrutura formal: é uma rede de pessoas e afetos que se construiu em torno de uma forma de estar.“Nascemos de encontros e seguimos nessa lógica. O brincar é o motor, mas também a pesquisa, a investigação continuada, a criação compartilhada. É uma forma de estar no mundo”, resume Clara.No balanço de dez anos, a Baileia mostra que não se trata apenas de criar espetáculos para crianças entre Brasil e Portugal, mas também de construir um percurso artístico que atravessa fronteiras e questiona hierarquias entre arte e educação. Um percurso em movimento, que agora volta a cruzar o Atlântico sem perder de vista a infância como horizonte e o brincar como revolução.nuno.tibirica@dn.pt.Este texto está publicado na edição impressa do Diário de Notícias desta segunda-feira, 25 de agosto de 2025..O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil..Brasileira revoluciona a cultura de circo em Portugal.Brasileiros e portugueses se unem em nova associação cultural com programação gratuita em Lisboa