Opinião. Tudo o que move é sagrado… mas imigrar é o 8º pecado capital
Reinaldo Rodrigues

Opinião. Tudo o que move é sagrado… mas imigrar é o 8º pecado capital

"Há igrejas partidárias de crenças políticas arcaicas pela Europa que estão prontas para queimar corpos imigrantes, vistos e tempos de permanência. Tudo em praça pública".
Publicado a

Texto: Luísa Cunha

Portugal não estava pronto para receber o nosso amor de índio, Beto. Ainda que removamos montanhas de xenofobia e olhos virados com todo cuidado. Ainda que façamos o mel para os setores econômicos do país. Mover não é mais um ato sagrado, imigrar é quase uma afronta à “ordem natural” do mundo contemporâneo. Há igrejas partidárias de crenças políticas arcaicas pela Europa que estão prontas para queimar corpos imigrantes, vistos e tempos de permanência. Tudo em praça pública.

Era o momento de Portugal se unir à população que escolhe o país como lar, mais do que nunca. Era tempo de desfazerem-se das mágoas e histórias geracionais ultrapassadas, preconceitos e estereótipos. Mas, infelizmente, o jargão do povo é outro. Entoam um “queremos fazer Portugal grande outra vez” e pronto, automaticamente ganhamos nosso rótulo de câncer. Afinal, não importa se as cadeias de mercado mudaram, se, de alguns anos pra cá, a sociedade em geral tem se aberto para o novo e diferente e isso tenha alterado a forma de desenvolvimento dos países e de suas economias, em Portugal, o problema da sua pequenez é sempre do próximo, jamais da própria resistência do seu povo em evoluir com o resto do mundo. Não é à toa que, na única vez em que enchi a boca de desgosto para vomitar em quem me mandou embora, lancei, em alto e bom tom, a verdade nua e crua que muitos outros precisam entender: “O problema do seu país ser pequeno são pessoas como você.”

“Portugal grande outra vez”… a frase que ainda ecoa na minha cabeça depois de assistir ao debate dessa semana na RTP. Ecoou, inclusive, enquanto passava por uma rotunda próxima de casa e que foi bruscamente interrompida, voltando para mim automaticamente a ser uma rotatória, quando avistei o outdoor com a propaganda de algum partido que dizia algo como “se estão aqui para mamar no governo, devem ir embora!”. Um pouco preocupada, vasculhei minha mente rapidamente e não encontrei um só imigrante que tenha conseguido acesso a algum benefício do governo e que não estivesse em uma situação de asilo, refúgio ou extrema vulnerabilidade social ou ainda, em caso de pecadores voluntários, estivesse, em parte iguais, contribuindo aos cofres públicos. Iguais não, desculpe, desiguais… e para o nosso lado, claro.

Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!

No meio dessa metamorfose linguística da raiva, onde rotunda virou rotatória, foi quando me ocorreu que, misturados a esse ódio irreverente à imigração, sem causa nem efeito direto comprovado e sem consequências avaliadas, ainda corremos o risco de sermos julgados como portugueses. Conseguimos o que queríamos, ser tratados como iguais. Afinal, sempre escuto reclamações internas sobre a quantidade de portugueses que vivem de seguros e bônus e auxílios, cômodos em um café toda a tarde. Ah, se eles soubessem que não há um só pingo de comodismo ou desejo de se acomodar quando se comete o pecado da imigração.

É um enigma complexo, a mentalidade portuguesa, de fato. Mas o problema dos imigrantes serem o problema já é um trava-línguas mais profundo, tem uma culpa que vai para além só do português e das retóricas políticas mal-intencionadas. Acontece que quem chegou aqui primeiro quer alguma vantagem de acolhimento, e é como se virassem para trás, à porta da AIMA, e dissessem rindo à toa “estou na sua frente”, sem perceber que fazemos parte da mesma fila de deportação. Inclusive, ao imigrante de consciência anã desavisado, ainda sem sua nacionalidade no bolso, eu sinto anunciar, mas corremos riscos de estarmos à bordo, em um futuro não tão distante, no mesmo avião de iniciativas de “remigração”. Seus aninhos de um Portugal “melhor”, onde você não era constantemente lembrado da nacionalidade que escolheu abandonar por não encontrar um compatriota a cada esquina, correm sérios riscos de não valerem realmente nada. Foi o que se passou essa semana, há alguns quilômetros daqui, na Itália.

Mas, ao fim e ao cabo, no artigo desta semana, resta-me agradecer a António Leitão, o primeiro português que nos incumbiu o título de responsáveis por fazer de Portugal um dos primeiros… primeiros no ranking de países com mais imigrantes da Europa! O que é mentira, Sr. António, mas agradeço o esforço de nos presentear com este mérito. Os singelos 15% que representamos da população portuguesa, segundo os novos números da AIMA, ainda não são suficientes para fazer Portugal menos português, e digo mais! Nem nós queremos isso.

Mas tenho que dar o braço a torcer: esses 15% realmente são suficientes para fazer Portugal grande em números, e nem falo dos 1,5 milhões que somos, mas dos números de geração de empregos e inovação em setores de comércio, serviços, educação e tantos outros da indústria portuguesa. Uma porcentagem pequena, os 15%, para os políticos que insistem em utilizá-la como alerta e incentivo ao medo, mas suficientes para realizar o desejo mais íntimo dos portugueses que pensam como Ventura: fazer Portugal grande outra vez.

*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
Opinião. Tudo o que move é sagrado… mas imigrar é o 8º pecado capital
Opinião. A verdade em crise: como debater quando os dados não bastam mais
Opinião. Tudo o que move é sagrado… mas imigrar é o 8º pecado capital
Opinião. Os ventos da extrema-direita varrem a Europa – e todos os imigrantes estão no olho do furacão
Diário de Notícias
www.dn.pt