Opinião. Ser estrangeiro não é o mesmo que ser imigrante
Texto: Diogo Batalha*
Em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir faz a seguinte reflexão: “O mais medíocre dos homens acredita-se um semideus diante de uma mulher”. Com isso, ela mostra que, para o homem, essa sensação de superioridade não precisa ser uma conquista pessoal. A estrutura social faz com que, apenas por ser homem, ele se sinta superior. E com mais poder.
Na década que vivo em Portugal, comecei a perceber que há um paralelo possível com a questão colonial. Se Simone fosse escrever um livro sobre colonialismo, talvez dissesse que “o colonialismo faz com que até o mais insignificante cidadão de uma metrópole se sinta superior ao cidadão de uma ex-colônia”.
É claro que essa dinâmica não é uma questão de caráter individual, mas sim o resultado de séculos de exploração e dominação material, que deixaram marcas profundas nas estruturas sociais de ambos os lados. Portugal e Brasil compartilham uma história entrelaçada por mais de 300 anos de colonialismo. Isso, ninguém pode apagar. Mas podemos sempre aprender com isso.
Durante esse período, a relação entre metrópole e colônia foi marcada pela extração de recursos, pela escravidão e pela imposição de uma hierarquia cultural e racial que colocava o europeu no topo e o colonizado na base. A independência do Brasil, em 1822, não rompeu completamente com essa lógica. Penso que essa hierarquia invisível acaba se manifestando de várias formas hoje. Não é como se fossem exatamente países irmãos, mas sim um pai e filho rebelde.
Sempre me irrita, por exemplo, quando alguém finge que não entende o que eu falo por conta do meu sotaque brasileiro. Como se a televisão portuguesa não tivesse novelas ou a rádio não tocasse Chico Buarque. Essa “surdez seletiva” é sustentada unicamente no privilégio de ter o passaporte e a história “certa”. É uma hierarquia simbólica que coloca o português europeu como a norma e o português brasileiro como uma variação "menor". Essa hierarquia não é natural; ela é o produto de uma história que privilegiou a cultura metropolitana em detrimento das expressões coloniais.
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Quando essa hierarquia invisível se encontra com a burocracia do Estado, o resultado é um sistema que, mesmo sem intenção explícita, reproduz essas desigualdades. Durante a pandemia, por exemplo, Portugal anunciou que todos os estrangeiros poderiam ser vacinados. A chamada “Casa Aberta”. Pelo menos no papel. Na prática, quando cheguei ao posto de vacinação, disseram-me que eu deveria procurar outro lugar. Mas ali mesmo, poucos minutos depois, o mesmo funcionário explicava a uma estrangeira — em inglês — que ela poderia se vacinar ali dentro de minutos.
Aí, o meu sangue ferveu, e a minha intervenção foi necessária. Falei em inglês também, exigindo que ele me desse as mesmas informações. O funcionário hesitou, mas mandou que esperássemos num canto. Outros imigrantes — alemães, holandeses, ingleses — foram chegando. Expliquei a eles como funcionava a vacinação e, sem perceber, tornei-me seu tradutor improvisado. Quando finalmente chamaram-nos para a vacina, o chefe da Defesa Civil perguntou: “Quem chegou primeiro?”. E todos apontaram para mim. E foi assim, pela força da coletividade da minha ONU pessoal e por um acaso da sorte, que consegui ser vacinado.
Mas é sempre esse processo, em que é preciso tentar três vezes e torcer para encontrar alguém que compre a sua briga. Quando contei a história para o meu amigo português, ele disse que o funcionalismo público no Brasil não deve ser mais tranquilo. Brinco com ele dizendo que meu lado decolonial gosta de pensar que até a burocracia nós aprimoramos.
É claro que a minha experiência é minha. Mas não é isolada. Ela reflete um sistema que, mesmo sem discriminar explicitamente, opera a partir de uma lógica que privilegia certos grupos em detrimento de outros. O imigrante europeu é visto como um expatriado, um indivíduo que está de passagem e, portanto, merecedor de um tratamento diferenciado. Já o imigrante brasileiro parece ser frequentemente visto como alguém que precisa provar seu valor para ser aceito.
Essa distinção não é fruto do acaso; ela é o resultado de uma história que construiu o europeu como o sujeito universal e o não europeu como o "outro".
A solução para essas desigualdades não está em culpar indivíduos ou nações, mas em reconhecer as estruturas que as perpetuam e trabalhar para desmontá-las. Isso exige, em primeiro lugar, uma revisão crítica da história colonial e de suas consequências. Em segundo lugar, exige a construção de novas relações baseadas na igualdade e no reconhecimento mútuo. Afinal, se há algo que Portugal e Brasil compartilham, além da língua, é a experiência de serem, cada um à sua maneira, vítimas de um sistema global que hierarquiza povos e culturas.
A verdade é que, neste caso, só fui “visto” depois de ser apadrinhado pelos estrangeiros europeus. Eles não precisavam justificar a sua presença ali. Ainda que persista a ideia de que, por um passado de domínio, alguns cidadãos são naturalmente superiores aos dos “ex-territórios colonizados”, na prática, essa "superioridade" não se sustenta em nada que há de concreto. A não ser nos direitos que se fecham a certo tipo de imigrantes.
Por isso, se eu pudesse dar uma única dica para os brasileiros que estão imigrando pela primeira vez para Portugal, seria esta: as maiores armas que você vai possuir são saber como se organizar e, de vez em quando, ser intransigente pelos seus direitos.
Bem-vindos e boa sorte.
*Diogo Batalha é redator há quase duas décadas (e desde 2015 vive em Portugal). É aracajuano desde que nasceu e detesta que não saibam onde Aracaju fica no mapa. Pai de uma pequena portuguesa, tenta achar palavras para explicar até mesmo o que ainda não consegue compreender.