Texto: Thiago Soares*Vivemos, em Portugal, um momento especialmente delicado para a comunidade migrante — e, sobretudo, para o Estado de Direito. Em um esforço evidente de reestruturar sua política de migração, o país criou novos órgãos, expandiu sistemas, anunciou “missões de aceleração” e promoveu mudanças institucionais profundas. Contudo, ao mesmo tempo em que se ergueram essas estruturas, o essencial foi negligenciado: a dignidade da pessoa humana e o respeito pelos prazos legais que o próprio Estado impôs a si mesmo.A criação da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), que substituiu o antigo SEF, veio acompanhada da promessa de agilidade nos processos de regularização, especialmente nas renovações de autorização de residência. Entretanto, na prática, temos observado a instalação de um verdadeiro limbo jurídico-administrativo, onde imigrantes permanecem meses aguardando a emissão do cartão de residência, mesmo após terem comparecido à coleta de dados biométricos e apresentado toda a documentação exigida.Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!Essa demora afronta o artigo 82.º da Lei dos Estrangeiros, que determina, de forma clara, que o Estado deve decidir sobre a renovação de residência no prazo de 60 dias. Vencido esse prazo, o pedido é, legalmente, considerado deferido. No entanto, a efetiva emissão do cartão de residência — documento essencial para garantir direitos — continua a depender de um sistema de back-office visivelmente incapaz de absorver a demanda.O paradoxo ganha contornos ainda mais graves com a recente aprovação da Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras (UNEF), uma força policial especializada com poderes de fiscalização nas ruas, nos aeroportos, nos portos e nos espaços públicos. Criou-se, portanto, uma força de contenção e vigilância, sem que se tenha, em paralelo, garantido a prestação mínima que é entregar o documento a quem já cumpriu com seu dever legal.A consequência é um sistema que pune aqueles que estão, paradoxalmente, dentro da legalidade, mas que não possuem o cartão por falha da própria máquina estatal. O imigrante, nesse cenário, torna-se vulnerável à fiscalização policial, ao risco de deportação, à exclusão social — e, mais recentemente, à exclusão econômica.Hoje, bancos e instituições financeiras já iniciaram o envio de comunicações informando que contas bancárias poderão ser encerradas caso não haja atualização do cartão de residência. A Segurança Social passou a exigir o cartão para emissão de número de NISS. Empresas começam a restringir contratações. O setor privado exige um documento que o setor público não entrega. É a consagração de uma prisão invisível, a céu aberto.Não se trata de um caso isolado, mas de um sistema que, ao mesmo tempo, cobra o que não consegue fornecer e pune quem não tem culpa. E o impacto disso não é apenas administrativo. É humano. Famílias estão impossibilitadas de viajar, visitar parentes, regularizar filhos, obter crédito, trabalhar, ou sequer existir plenamente sob a proteção do Estado.Inclusive aqueles que possuem direito à residência por vínculo familiar com cidadãos portugueses ou europeus enfrentam as mesmas barreiras — mesmo sendo dispensados de visto, são tratados como se estivessem em situação irregular. O que está em curso não é uma crise migratória. É uma crise de gestão pública.O direito internacional, ao qual Portugal está vinculado, impõe a obrigação de garantir proteção e previsibilidade jurídica àqueles que se submetem às normas. A regularização migratória, além de uma ferramenta de controle e organização, é um direito do migrante que cumpre as exigências legais. Quando o Estado falha, o ônus não pode recair sobre o cidadão estrangeiro.Portugal tem mostrado, nos últimos anos, avanços institucionais importantes. Mas nenhum avanço estrutural é suficiente se a base da justiça for ignorada. Fiscalizar sem garantir direitos é retrocesso. Cobrar documentos sem conseguir emiti-los é abuso. E manter famílias inteiras reféns da burocracia é, sobretudo, incompatível com o Estado Democrático de Direito.A reconstrução do sistema migratório português exige mais do que força policial ou missões extraordinárias. Exige respeito ao prazo, compromisso com a legalidade e dignidade para quem escolheu este país como lar.*Thiago Soares advogado especialista em Direito Migratório e fundador da comunidade "Portugal é Nóis"..O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil..Opinião. Mudar legalmente é o maior desafio: a contradição da política migratória portuguesa.Opinião. Portugal quer atrair cérebros, mas amarra até os seus