Opinião. Por que precisamos redesenhar as regras do comércio eletrônico no Brasil e na Europa
Texto: Tales Calaza*
Se antes as praças e mercados eram os principais espaços de troca, hoje essa realidade é digital. O comércio eletrônico está no centro da vida moderna — seja para comprar um eletrodoméstico, assinar um serviço de streaming ou marcar uma consulta online. A praticidade é inegável, mas, com ela, surgem novos desafios. A cada clique em “aceito os termos”, celebramos um contrato. Mas será que entendemos o que estamos aceitando? Essa dúvida revela um desequilíbrio nas relações de consumo online.
Ao navegar em sites e apps, o consumidor é convidado a concordar com termos longos e complexos. Mesmo assim, o clique em “aceito” virou rotina. O problema é que, ao aceitar sem compreender, o consumidor pode estar renunciando a direitos, autorizando o uso indevido de dados ou aceitando regras injustas. A prática, embora legal, é eticamente questionável. Afinal, que tipo de consentimento existe sem real compreensão?
Estudos mostram que a maioria dos usuários sequer lê os documentos contratuais. A linguagem técnica, o excesso de informações e o formato pouco acessível afastam o leitor. Isso cria uma relação desigual: de um lado, empresas que moldam contratos e interfaces; do outro, consumidores que “assinam no escuro”. O contrato, que deveria representar equilíbrio, torna-se uma armadilha silenciosa.
Nesse cenário, a forma como as opções são apresentadas nas plataformas influencia diretamente nossas decisões. É a chamada “arquitetura da escolha”. Se bem usada, pode incentivar atitudes positivas, como facilitar o cancelamento de serviços ou destacar escolhas sustentáveis. Mas o mesmo mecanismo pode ser manipulado por padrões escuros de design – os chamados dark patterns – que enganam ou pressionam o usuário. Contadores falsos, botões escondidos e cores enviesadas são exemplos comuns. A linha entre orientar e manipular é tênue, e é por isso que esse debate se torna tão urgente.
Para responder a esse desafio, o movimento do Legal Design propõe uma mudança: tornar o direito mais claro, acessível e centrado nas pessoas. Combinando design gráfico, linguagem simples e empatia, ele transforma contratos e políticas de privacidade em materiais que realmente podem ser compreendidos. Já é possível ver empresas que adotam infográficos, vídeos, resumos e fluxogramas. Isso não apenas evita disputas jurídicas, como fortalece a confiança entre consumidor e fornecedor.
Órgãos públicos e tribunais, no Brasil e na Europa, já reconhecem o valor dessa abordagem. O Conselho Nacional de Justiça brasileiro, por exemplo, recomenda o uso de Visual Law para tornar decisões e documentos mais acessíveis. Na Europa, crescem as iniciativas de simplificação da linguagem jurídica voltadas aos consumidores.
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Mais do que atender à lei, essas práticas demonstram que é possível fazer melhor. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) já recomenda medidas como destacar quando preços são personalizados por algoritmos, identificar claramente publicidades e facilitar o acesso à resolução de conflitos. Algumas plataformas permitem até que o consumidor escolha o formato de visualização dos termos – texto, vídeo, fluxograma. Outras mantêm histórico de versões contratuais, para que o usuário saiba exatamente o que aceitou no momento da contratação.
O Brasil, apesar de contar com normas relevantes, ainda carece de uma legislação unificada, moderna e específica para o comércio eletrônico. Diferentemente de países como França e Portugal, não há uma definição legal expressa do que é o comércio eletrônico, nem regras claras para contratos firmados sem intervenção humana. Avançar nessa direção exige não apenas reformar leis, mas repensar como comunicamos essas regras.
Iniciativas como o Prémio FIBE mostram o valor do diálogo entre Brasil e Europa na busca por soluções comuns. Se os desafios digitais são globais, as respostas também podem ser. É preciso construir um comércio eletrônico mais ético, transparente e humano – onde consumidores não apenas aceitem termos, mas compreendam o que estão contratando. Afinal, mais do que consumidores digitais, somos todos cidadãos digitais.
*Tales Calaza foi agraciado pelo 2º Prémio FIBE, com o 1º Lugar na categoria de Direito, pela dissertação de mestrado “Requisitos jurídicos e boas práticas no comércio eletrônico: os termos de fornecimento nas relações de consumo brasileiras em meio digital”. A pesquisa inspirou este artigo.