Opinião. Para que serve um imigrante?
Carlos Pimentel

Opinião. Para que serve um imigrante?

"Somos pessoas que têm muito a aprender, mas que também têm muito a ensinar. Somos pessoas que aprenderam a sobreviver e a viver, a encontrar felicidade e a sorrir, mesmo estando em uma terra em que nos dizem frequentemente que não é “a nossa” e que não somos bem-vindos".
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Texto: Mariana Braz*

Nos últimos anos, a imigração tem se tornado um tema cada vez mais central entre partidos políticos anti-imigração de Portugal, de outros países da União Europeia (UE) e dos Estados Unidos, que continuam se aproveitando do processo de colonização e de antigos preconceitos e violências étnico raciais, ainda bem mal resolvidos, para propagar discursos de ódio contra imigrantes do chamado Sul Global com o objetivo de conseguir mais visibilidade e popularidade, e assim conquistar mais cadeiras no parlamento.

Com tanta desinformação e discursos de ódio sendo amplamente propagados, ficamos tão preocupadas e preocupados em buscar motivos que justifiquem e legitimem a nossa permanência em Portugal, e que esses motivos sejam considerados válidos para a população que “nos recebe”, que ignoramos que, se saímos da “nossa terra” para fugir da violência, se saímos da “nossa terra” em busca de melhores oportunidades, e se saímos da “nossa terra” em busca de mais qualidade de vida, é porque a “nossa terra” foi alvo de um processo de colonização violentíssimo que durou (oficialmente) 322 anos, e que favoreceu a terra “deles” em detrimento da “nossa”.

Ignoramos que a saída de tantas pessoas do chamado Sul Global em direção ao chamado Norte Global, nada mais é do que uma das consequências de todo processo de violência e exploração colonial a que nossos países foram submetidos, consequências das quais o Norte Global não tem mais conseguido fugir e agora, que a conta chegou, tem de encontrar uma maneira de arcar com ela.

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Na contramão dos discursos de ódio, vamos então tentando dialogar e mostrar a importância dos imigrantes para Portugal, e que, sem nós, esse país não sobrevive e nem sobreviveu no passado. Falamos sobre o aumento das contribuições financeiras de imigrantes para a Segurança Social nos últimos anos: em 2021 foram 1200 milhões de euros, em 2022 foram 1861 milhões de euros, e em 2023 subiram para impressionantes 2677 milhões de euros. Falamos sobre como imigrantes também têm sido indispensáveis para preencher os postos de trabalho na área da agricultura, principalmente no interior do país, na pesca, na restauração, e no desenvolvimento do setor imobiliário.

Falamos sobre os estudantes universitários imigrantes (frequentemente chamados de “estrangeiros” ou “internacionais”, porque fica “mais bonito” para o país), que no ano letivo de 2022/2023 somaram 74.597 estudantes nas universidades, correspondendo a 17% do total de estudantes do ensino superior do país, e, claro, pagando propinas e possibilitando que algumas turmas continuem de pé. Falamos sobre a importância das mulheres imigrantes, cujos úteros são responsáveis pelo aumento da natalidade em um país envelhecido. 

Entretanto, ao recorrer apenas à importância econômica dos e das imigrantes para o país, podemos estar caindo na cilada de olhar para nós mesmos com o velho olhar racista-colonial de submissão e dominação de nossos corpos para o trabalho braçal e sexual, de alimentar o imaginário de desumanização dos imigrantes, de estarmos apagando nossas subjetividades, culturas e conhecimentos, de estarmos nos reduzindo apenas à uma ferramenta útil ao sistema, ferramenta que, quando já não for necessária, ou, não puder mais ser utilizada para servir à economia portuguesa, corre o risco de poder ser descartada e jogada de “volta para a sua terra”.

Torna-se então uma questão de sobrevivência não esquecermos que “Imigrantes são mais que mão de obra barata”, como li em um dos cartazes na manifestação do último dia 11, em Lisboa. Nós somos mais que nossas contribuições para a Segurança Social, nós somos mais que os postos de trabalho que ocupamos, nós somos mais que estudantes universitários, nós somos mais que nossa capacidade de gerar crianças.

Somos pessoas que cruzaram oceanos, muitas vezes sozinhas ou acompanhadas de filhos pequenos. Somos pessoas que criaram redes de apoio mútuo, espaços de resistência, manifestações, organizações, projetos, jornais, por sabermos qual a importância e a potência da coletividade e do acolhimento, principalmente entre mulheres. Somos pessoas que formaram famílias sem laços de sangue, encontrando nos amigos e amigas o amor, a segurança, e uma base para se apoiar nos momentos mais difíceis.

Somos pessoas que conseguiram transformar um pequeno quarto, em uma casa compartilhada com desconhecidos, em nosso lar. Somos pessoas que, apesar de todas as adversidades e da sútil violência dentro de espaços acadêmicos ou de trabalho, conseguimos o nosso diploma ou a nossa promoção para um cargo melhor. Somos pessoas que sabem da importância da nossa cultura para a nossa identidade, e por isso continuamos produzindo música, dança, exposições, eventos, festas, blocos, escrevemos livros. Somos pessoas que não baixam a cabeça, que lutam por nossos direitos e que não se calam perante violências e injustiças. Somos mães e pais que deixaram suas carreiras profissionais e uma vida confortável em nosso país de origem em busca de segurança e de melhor qualidade de vida para nossos filhos e filhas.

Somos pessoas que sabem da importância das trocas culturais e das experiências, e por isso damos um jeito de conseguir viajar, conhecer outros países e outras pessoas diferentes de nós. Somos pessoas que têm muito a aprender, mas que também têm muito a ensinar. Somos pessoas que aprenderam a sobreviver e a viver, a encontrar felicidade e a sorrir, mesmo estando em uma terra em que nos dizem frequentemente que não é “a nossa” e que não somos bem-vindos. Somos pessoas que amam (uns dias mais, outros menos) e que pertencem a este país.

Então, quando nos questionarem: “para que serve um imigrante?”, que possamos nos lembrar que um imigrante não precisa servir. Que possamos nos lembrar que, como qualquer outro cidadão e cidadã do país, o que o imigrante precisa é viver. 

*Mariana Braz é psicóloga clínica, mestra em Psicologia Clínica e doutoranda, e tem como áreas de estudo a saúde mental, o feminismo decolonial, a xenofobia, o racismo, a violência contra mulheres, e a violência contra pessoas lgbtqia+. Vive entre o Brasil e Portugal há 07 anos, tempo em que vem trabalhando com mulheres imigrantes em diversos países, principalmente com mulheres brasileiras. Também tem atuado com uma perspectiva de ativismo, acolhimento e empoderamento de mulheres imigrantes em diversos países, e desde 2020 desenvolve nas redes sociais o projeto Brasileiras Não Se Calam. Escreve sobre temáticas relacionadas à mulheres, imigração, e violência de gênero, tendo publicado diversos artigos em jornais portugueses.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.

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