Opinião. O Governo tenta reescrever sua própria história com o alvo nos imigrantes
Texto: Thiago Soares
Está em marcha um dos pacotes legislativos mais restritivos da história recente da política migratória portuguesa. Em breve, a Assembleia da República votará alterações profundas na Lei dos Estrangeiros: o fim do visto de procura de trabalho tal como o conhecemos, mudanças no reagrupamento familiar, revisão da Lei da Nacionalidade e restrições à autorização de residência para cidadãos da CPLP. Tudo isso sustentado por uma narrativa que já se repete com familiaridade inquietante: a culpa é do governo anterior — e dos imigrantes que “invadiram” o país.
Mas há um detalhe fundamental que o discurso oficial prefere silenciar: o atual governo, em seu primeiro mandato (2024–2025), foi o mesmo que defendeu uma política apaziguadora de imigração. Prometia dignidade no atendimento ao imigrante, racionalização da burocracia e acesso regulado à residência, inclusive para nacionais da CPLP que já estavam em Portugal, mesmo com previsão legal à época. Esse reposicionamento abrupto — de apaziguamento a perseguição — não é sinal de coerência política. É oportunismo.
A chamada Manifestação de Interesse, hoje tratada como símbolo do caos migratório, foi criada em 2007 com apoio alargado do Parlamento, incluindo o partido do atual Primeiro-Ministro. Desde então, foi reforçada e mantida como principal via de regularização para quem já trabalhava no país. Nada foi feito às escondidas. Nada foi surpresa. Ainda assim, é essa política que hoje serve de bode expiatório para justificar um novo cerco legislativo.
Entre 2017 e 2024, Portugal assistiu a um aumento expressivo da população estrangeira. Em 2017, estrangeiros representavam cerca de 4% da população portuguesa. Em 2024, esse número já chegava a 15% — um crescimento de mais de um milhão de pessoas em apenas sete anos. Mas culpar a imigração por problemas estruturais antigos é, no mínimo, intelectualmente desonesto.
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Na habitação, os preços não dispararam porque imigrantes chegaram — mas porque o Estado abandonou sua função reguladora e permitiu que o mercado fosse tomado por dinâmicas especulativas. Na saúde, não foram os estrangeiros que causaram o colapso, mas anos de subfinanciamento, degradação da infraestrutura e falta de políticas de retenção de profissionais.
Na segurança, não há evidência séria que comprove a tese de que o aumento da imigração provocou mais criminalidade. Ainda assim, a narrativa segue sendo alimentada — sem dados, mas com conveniência.
O que estamos a viver não é uma mudança de rumo baseada em evidências, mas uma reinvenção da culpa. E, pior: uma tentativa clara de apagar o papel histórico do próprio governo nos processos que hoje tenta condenar. Rever políticas públicas é legítimo. Ignorar a própria responsabilidade histórica e colocar a culpa sobre os mais vulneráveis não é.
A pergunta segue ecoando:
E quando o imigrante for embora, e os problemas permanecerem?
Quando o governo anterior já não servir de desculpa, o que restará?
A resposta não será apenas um teste para este governo. Será uma medida exata da maturidade democrática de Portugal.
*Thiago Soares é empreendedor, advogado que atua com Direito Migratório e criador do projeto comunidade "Portugal é Nóis", onde dá voz aos desafios da imigração em Portugal com olhar crítico, experiência própria e compromisso social.