Opinião. Por que o reagrupamento familiar, um direito universal, virou um barril de pólvora?
Texto: Priscila S. Nazareth Ferreira*
Todas as constituições das repúblicas ou monarquias, que se declaram democráticas no mundo ocidental, têm uma coisa em comum: definem o direito da família como sendo fundamental. É consagrado nas chamadas "cláusulas pétreas" e significa dizer que nem mesmo uma reforma constitucional pode lhes tocar. A única forma de se ofuscar esse direito é criando uma nova Constituição. E não simplesmente "repaginando" uma já em vigor ou mesmo numa virada de mesa numa votação improvisada no parlamento. A Assembleia Nacional Constituinte é coisa séria. A de Portugal já é uma "senhora" de mais de 51 anos.
As constituições mais famosas do mundo repetem a lei que lhes conferiram o status de protetoras das democracias, isso porque os países aderentes da ONU têm na Carta das Nações Unidas de 1945 a lei maior que supera todas as legislações nacionais e acordos internacionais. Vejam o poder desse documento, caros leitores.
O mais incrível é que não se trata de uma lei, e sim de um compromisso firmado entre todos os Estados Membros, incluindo Portugal. O documento foi criado em 1941, durante a segunda guerra mundial, mas somente foi assinado em 1945, com o fim do conflito. A adesão de Portugal ao documento ocorreu somente dez anos depois.
Isso significa dizer que há um antes e um depois da Carta das Nações Unidas e da Declaração Universal de Direitos Humanos. No artigo 55, os países signatários assumiram o compromisso do "respeito universal e efectivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Já no artigo 57, para a realização dos objetivos enumerados no artigo 55, todos os membros da organização se comprometeram a agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente.
Já no artigo 16 da declaração foi consagrada a importância da família: A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado". A observação do artigo 12 aponta para direitos sociais de seguridade: "Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade"
Vale dizer que o imigrante é membro da sociedade? Por mais que essa realidade não faça parte da consciência de muitos portugueses, a Constituição da República de Portugal faz questão de os lembrar no seu artigo 15, se não vejamos: artigo 15.º. (Estrangeiros, apátridas, cidadãos europeus)1. Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português.
Pasmem. O estrangeiro que está em Portugal ou aqui reside goza de direitos. Sei que é difícil para muita gente aceitar. Para esses uma sugestão: procurem na lista dos países do mundo aqueles que não constam na ONU o de clima, culinária, paisagens naturais que mais lhes agrada, talvez seja o caso de pedir um "visto", já que vosso modo de pensar vai encontrar grande acolhida. A Coreia do Norte lhe apetece?
Parece estranho aos olhos de alguns, mesmo os que são formados em Direito, e hoje figuram na posição de lideranças partidárias, que essa regra tão fundamental da constituição esteja renegada ao esquecimento. Isso surpreende muito a essa advogada, mesmo porque o que esses senhores e eu temos em comum é o conhecimento do Direito Constitucional e sua hierarquia perante qualquer outra norma subjacente.
E quando se fala em membros da CPLP será que o tratamento tem alguma especialidade? Não há qualquer surpresa nisso: o inciso 3 do mesmo artigo definiu que os aos cidadão da CPLP são conferidos direitos não conferidos a estrangeiros, e na mesma condição de reciprocidade dos Portugueses nesses países. O Acordo de Mobilidade CPLP é um grande exemplo dessa regra constitucional existente desde 1974, assim como o Estatuto de Igualdade definido no Tratado de Porto Seguro.
Será que já deu para notar que falar em suspensão do reagrupamento familiar é simplesmente rasgar a Constituição, violar a declaração universal de direitos do homem e dar as costas às obrigações assumidas quando Portugal aderiu à ONU?
Petições, projetos de lei populistas, vídeos virais na internet, comentários sem fim nas redes sociais, etc, nada disso é maior do que essas três normas acima representadas. Quando os políticos estiverem interessados em promover a governabilidade ao invés de simplesmente angariar adeptos e simpatizantes às suas falsas ideologias a gente volta a dialogar.
Não se joga xadrez com pombos por isso. No meio do jogo, eles defecam no tabuleiro, espalham as peças e saem arrulhando o seu "cruuuu, cruuuuu, cruuuuu" habitual como se tivessem ganhado o jogo. Dito isso, caros leitores, saibam que se Governo português suspender o reagrupamento é comprar uma briga com quem de fato manda na União Europeia, e já deu para ver que não somos nós, vide o fiasco que aconteceu com o engodo da CPLP de papel, virou piada antes de fazer um ano.
OBS: você pode discordar de mim no @narealnaeuropa.
*Priscila S. Nazareth Ferreira é advogada de Direito Internacional Privado