Texto: Diogo Batalha*Em 2008, fui morar em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Quando lá cheguei, fiquei confuso com a definição que davam ao Guaíba. Uns chamavam de Rio Guaíba. Outros, de Lago Guaíba. No começo, entendi como uma disputa geográfica para definir se ele corria — ou não — para o mar. Mas, com o tempo, percebi que era, na verdade, uma briga política por interesses do mercado imobiliário. O famoso lobby.Explico: por ser o encontro de três rios, o Guaíba é bastante largo. A questão é que, se classificado como rio, por lei, ninguém pode construir a menos de 500 metros da margem, devido à sua extensão. Agora, se for considerado um lago, é possível erguer prédios a apenas 30 metros da água. Curiosamente, o próprio governo do Rio Grande do Sul, em 1998, criou o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do… Lago Guaíba. Este mesmo governo, após as enchentes que devastaram uma área do tamanho da Península Ibérica em junho de 2024, resolveu expulsar famílias que ocuparam um prédio público que estava vazio há décadas. Essas famílias haviam perdido tudo nas chuvas. Mesmo assim, a ocupação durou apenas um dia, deixando claro que o governo está mais preocupado com a definição de lagos e rios do que em garantir o direito à habitação — previsto na Constituição Federal desde 1988.Enquanto o artigo 6º da Carta Magna brasileira estabelece a moradia como um direito social fundamental, e o artigo 23, inciso IX, atribui aos governos a responsabilidade de promover políticas habitacionais, o que vemos na prática é a priorização de interesses imobiliários sobre as necessidades humanas. Mais vale "redefinir" a natureza conforme seus interesses do que cumprir a Constituição. O que é um rio? O que é um lago? No final, são apenas categorias flexíveis quando o lucro está em jogo.Em Portugal, a história não é diferente: a Constituição garante a todos o direito a uma habitação digna, mas a realidade é outra. Cá, do outro lado do Oceano Atlântico, a Lei dos Solos portuguesa revela essa mesma engrenagem cruel do Guaíba. A reclassificação de solos rústicos para urbanos não nasce de uma necessidade social, mas da pressão do setor imobiliário para expandir fronteiras de acumulação.O Estado legisla em favor dos proprietários de terra e construtoras, a ponto de tanto o PS (dito de esquerda) quanto o PSD (dito de direita) estarem de acordo com a mudança e declararem que ela está “fadada ao sucesso”. Mas o “sucesso de quem” é que eles não explicam muito bem. Preferem unir-se como sócios nesta farsa: vender a narrativa de que "mais construção" resolverá a crise da habitação.A prova de que isso é mentira? O número de habitações em Portugal mais que duplicou, passando de 2,7 milhões (em 1970) para quase 6 milhões (em 2021). E, mesmo assim, os jovens não conseguem comprar casas — enquanto o lucro das imobiliárias bateu recordes em 2024 —, e o número de pessoas sem ter onde viver só cresce. Atualmente, há 13 mil pessoas sem casa em Portugal, e a OCDE já alertou que, entre 2014 e 2018, o número de moradores de rua no país aumentou 157%.Enquanto as pessoas sem-abrigo são reduzidas a números em relatórios, alguns dos “sem-vergonha” no poder oferecem migalhas — como programas assistencialistas inconsistentes e insuficientes — para tentar mascarar a falência desse sistema que prioriza o negócio sobre o direito à vida digna.Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!A tragédia, é claro, não está na falta de recursos. Mas na distribuição. Afinal, em Portugal há 730 mil casas vazias, enquanto, no Brasil, são 6 milhões de lares desocupados, segundo o IBGE. Números mais do que suficientes para resolver a questão tanto lá como cá. Nota-se, assim, que essa “escassez de casas” é artificial. Fabricada para manter os preços altos e os lucros seguros. Mas cada casa fechada é um lembrete incômodo de que o sistema não funciona para todos.A solução para esta questão não virá de reformas paliativas na lei dos solos. Nem de debater se legalmente o Guaíba é rio ou lago. A resposta está em utilizar as casas vazias já existentes e transformá-las em habitação social, planejar o uso do solo com base nas necessidades da população — e não apenas no lucro — e regular o mercado imobiliário para evitar a especulação e garantir que a habitação seja acessível a todos.Claro, os políticos ditos “liberais” gritarão que isso é "utopia". Mas, para mim, a verdadeira utopia é acreditar que políticos atrelados ao setor imobiliário legislam de forma isenta sobre o tema da habitação. A história mostra que um sistema baseado na acumulação privada nunca inclui os excluídos. Inclui, apenas, os seus melhores clientes.A realidade é que, enquanto as práticas especulativas do mercado imobiliário forem mais importantes do que garantir o cumprimento da Constituição, os políticos e empresários do setor continuarão a brindar seus “sucessos” nos terraços de apartamentos de luxo. Já as milhares de pessoas sem ter onde morar seguirão à margem. Não de um rio. Nem de um lago. Mas sim, de toda a sociedade contemporânea.*Diogo Batalha é redator há quase duas décadas (e desde 2015 vive em Portugal). É aracajuano desde que nasceu e detesta que não saibam onde Aracaju fica no mapa. Pai de uma pequena portuguesa, tenta achar palavras para explicar até mesmo o que ainda não consegue compreender..O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil..PS assegura habitação a “custos controlados” na lei dos solos .Opinião. Ser estrangeiro não é o mesmo que ser imigrante