"Se o país quer continuar a atrair investimento, talento, diversidade e crescimento populacional saudável, precisa mais do que boas leis no papel".
"Se o país quer continuar a atrair investimento, talento, diversidade e crescimento populacional saudável, precisa mais do que boas leis no papel".Foto: Leonardo Negrão

Opinião. Perfeito na letra da lei, nem tanto na prática

"É como se o Estado vendesse uma maçã reluzente, chamativa, cheirosa e aparentemente saborosa. Mas ao dar a primeira mordida, o estrangeiro percebe que há veneno"
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Texto: André Lima*

Há quem diga que em Portugal o problema não é a lei. E, de fato, nem sempre é. Na teoria, o país exibe um dos sistemas legais mais avançados da União Europeia no que se refere aos direitos dos estrangeiros. Mas como diria qualquer cidadão imigrante com mais de 30 dias de chão português: perfeito mesmo, só na letra da lei.

O que acontece entre o que está no Diário da República (DRE) e o que se vive nas filas da AIMA, nas conservatórias, na Segurança Social, ou na esquina do SEF (sim, porque até fantasma assombra), é um abismo.

Tomemos como exemplo o tão festejado artigo 87.o-A da Lei de Estrangeiros, que prevê a regularização de cidadãos da CPLP que tenham entrado legalmente no país, aprovado lá no ano de 2023. Uma medida bonita, moderna, progressista — uma verdadeira Branca de Neve legislativa. Mas ao tentar aplicá-la, deparamo-nos com a bruxa. A promessa regularização virou um feitiço: sem plataforma funcional, sem agendamentos, sem resposta. Muitos aguardam por anos a concretização de um direito que já está reconhecido... só falta ser cumprido.

Outro exemplo: a lei diz que quem vem com visto de residência deve receber logo de cara o NIF, o NISS e o número de utente, para garantir uma inserção célere na sociedade portuguesa. Por último, o Governo chegou a anunciar com pompa e circunstância a criação de balcões exclusivos para que esses estrangeiros, onde, num só atendimento, todos esses documentos seriam emitidos. Parecia um sonho europeu. Mas até agora, nenhum balcão foi operacionalizado de forma eficaz. Nenhuma integração “automática” acontece. Quem chega continua a peregrinar entre repartições, perdendo tempo, dinheiro e dignidade.

Enquanto isso, o sistema colapsa, os prazos não são respeitados e o estrangeiro vive num limbo jurídico que compromete sua vida pessoal e profissional. São centenas de milhares de pessoas com processos travados, com direitos prejudicados e com direito de circular legalmente limitado. E nesse cenário, é inevitável que surjam situações de abusos de autoridade, discricionariedade administrativa e práticas que beiram a ilegalidade, tudo com um pano de fundo de insegurança jurídica constante.

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É como se o Estado vendesse uma maçã reluzente, chamativa, cheirosa e aparentemente saborosa. Mas ao dar a primeira mordida, o estrangeiro percebe que há veneno. A lei prevê regularização célere, acolhimento digno e integração imediata. O que foi entregue foi descaso, burocracia e invisibilidade insconstitucional. E no final da história, os imigrantes ainda acabam por passarem pela acusação de serem os culpados pela maioria dos problemas do país. Isso é o que está a ser propagado por uma malta extremista.

E os prejuízos não se limitam ao plano pessoal. Muitas empresas esperam pelos documentos dos seus trabalhadores para cumprir contratos e compromissos. Famílias são impedidas de reencontrar-se porque o reagrupamento familiar virou há anos um processo tortuoso. Há quem não consiga sequer renovar contratos de arrendamento ou abrir conta em banco por não ter documentação mínima. Tudo isso viola direitos fundamentais, bloqueia vidas e compromete a própria imagem internacional de Portugal.

Se o país quer continuar a atrair investimento, talento, diversidade e crescimento populacional saudável, precisa mais do que boas leis no papel. É hora de fazer valer a lei. De transformar o “era uma vez” do Diário da República em realidade para quem já fez as malas, chegou e está disposto a contribuir com este país.

Do contrário, continuaremos a assistir à repetição do mesmo conto de fadas invertido: o estrangeiro que veio de forma encantada, com intenções reais e sinceras de contribuir e crescer, acaba caindo no feitiço pela bruxa.

*André Lima, Advogado, inscrito nas Ordens dos Advogados de Portugal e do Brasil, pósgraduado em Finanças, Reestruturação e Contencioso Corporativo pela Universidade Católica Portuguesa, e pós-graduando em Direito Internacional, Imigração & Migração pela EBPÓS.

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