"Movida pela ancestralidade e por esse espírito de abertura e congregação, a Casa Oxente se propõe a ser esse espaço de afeto, como toda casa de avó".
"Movida pela ancestralidade e por esse espírito de abertura e congregação, a Casa Oxente se propõe a ser esse espaço de afeto, como toda casa de avó".Foto: DR

Opinião. Como pertencer em um mundo globalizado?

A Casa Oxente foi inspirada na casa de sua avó Maria Luísa, que ficava perto da foz do rio São Francisco, na cidade de Neópolis, na fronteira entre Sergipe e Alagoas.
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Texto: Cristina Fontenele*

O sentimento de pertença é uma constante reflexão na vida imigrante. Como pertencer em um mundo globalizado, com múltiplas referências e fragmentações? A convite do espaço cultural Casa Oxente, tive a alegria de conversar sobre o tema “Territórios de Pertencimento” na semana passada. Além de um público diverso de nacionalidades e experiências, contamos com as presenças do cônsul-geral do Brasil em Lisboa, o embaixador Alessandro Candeas, e do diplomata lotado na Embaixada do Brasil, Diogo Lyra. Foi um momento de muita partilha e interação a confirmar que o pertencimento é uma necessidade humana e também um processo dinâmico.

Venho estudando o tema desde 2017 pela elaboração do meu livro Um lugar para si: reflexões sobre lugar, memória e pertencimento, publicado em 2020. Ao longo de leituras, entrevistas com imigrantes, tenho percebido que a cada novo lugar que habitamos, somos convidados a repensar nossa identidade e a ajustar o pertencimento de acordo com as interações sociais e simbólicas. Pertencimento não é um conceito fixo e imutável, mas resultado das vivências que estão sempre em evolução.

Pesquisar sobre pertencimento é também aprender sobre identidade, memória, lugar e sobre as estratégias de adaptação que adotamos para nos inserir em uma nova cultura. Segundo o cônsul-geral Brasil em Lisboa, Alessandro Candeas, que é doutor em Socioeconomia do Desenvolvimento e estudioso das Ciências Humanas, pertencer é um conceito que implica em uma relação de posse, pois quando um sujeito diz que pertence a uma comunidade, a um país, a um movimento, significa que aquele país, nação, família, região, têm a posse do seu afeto, do seu pensamento, de partes da sua personalidade, do seu ser. “Significa realmente uma relação de posse - você se doa, você se dá”, diz o embaixador.

Candeas complementa que o ser humano é ao mesmo tempo universal e particular, pois se identifica com homens e mulheres de qualquer outra parte do mundo, tem pensamento, emoções, desejos universais, mas há algo que o define e o marca como local e pertencente a uma determinada região, ou cidade, ou até mesmo a um grupo cultural. “Quando eu digo local, pode ser um local geográfico. Mas essa identificação cultural pode perpassar fronteiras também, sobretudo com a globalização.”

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Diogo Lyra, diplomata lotado na Embaixada do Brasil, destacou a satisfação em constatar que a Casa Oxente, mais que um espaço cultural, é um lugar de conexão de pessoas encantadas com o universo afetivo e artístico nordestino e, por decorrência, brasileiro. “Fico grato aos anfitriões pelo convite e acolhida generosa e à Cristina por guiar, com sutileza e maestria, uma visita crítica aos meus sistemas particulares de pertencimento”.

O fundador e curador da Casa Oxente, Wilame Lima, me disse que o projeto foi criado para que o Nordeste pudesse falar por si. “Não temos a intenção de traduzir uma região tão diversa, mas abrir espaço para a sua força inventiva. Também nos move o desejo de provocar encontros entre artistas nordestinos e europeus, numa escuta mútua que desloque olhares e fronteiras".

Lima, que é de Aracaju, contou que a galeria foi inspirada na casa de sua avó Maria Luísa, que ficava perto da foz do rio São Francisco, na cidade de Neópolis, na fronteira entre Sergipe e Alagoas. Um lugar onde ele passava férias e marcava também um território de pertencimento. “Era um espaço de abertura e onde eu me sentia muito bem pra ser quem eu era. E eu notava que as pessoas se sentiam assim também lá.”

Uma casa onde os portões estavam sempre abertos, não havia cadeado e o único momento em que estava fechada era de madrugada, quando a avó ia dormir. Lima lembra que depois da novela, a avó saía, apoiava-se no muro da frente olhando para a rua e falando com as pessoas que passavam. Um hábito tão forte que a rua da lateral da casa ganhou o nome da avó após esta falecer.

Movida pela ancestralidade e por esse espírito de abertura e congregação, a Casa Oxente se propõe a ser esse espaço de afeto, como toda casa de avó. Um lugar de encontros para debates em torno da arte, com saraus, oficinas e costuras entre o Brasil e a Europa.

Em setembro, a galeria inaugura sua nova sede na Rua Passos Manuel, 64A, no bairro da Estefânia, levando o acervo já formado com obras de 40 artistas do Nordeste brasileiro. Uma diversidade estética e política, desde a força simbólica dos mestres populares às experimentações de artistas contemporâneos. Espaços que promovem arte, cultura, colóquios, são cada vez mais territórios de incentivo à reflexão, pertença e criação de comunidades.

*Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
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