Memórias de abril: os brasileiros na Lisboa da Revolução dos Cravos
Enoir Oliveira da Luz é até hoje conhecido pelo seu “nome de guerra”, herança dos tempos de militância em pleno Regime Militar (1964-1985) no Brasil. “Até a juíza que me deu anistia me chamou de Juca”, conta Juca Oliveira, 86, em entrevista ao DN Brasil. Gaúcho de Caxias do Sul (RS), Juca achava que sua vida fora do Brasil duraria poucos meses quando teve que se exilar do país em 1972, então com 34 anos. Após passar por Argentina e União Soviética no exílio, ele chegou pela primeira vez a Portugal em outubro de 1975, um ano e meio após a Revolução dos Cravos.
“Em 1974 eu já estava em Moscou, e inclusive com outros camaradas portugueses, quando eclodiu a Revolução. Eles não podiam acreditar. Chegou um Telex no 25 de Abril, mas só quando foi alguém para lá confirmar que era verdade é que nós acreditamos e começamos a fazer o movimento para vir para cá”, relembra Juca, recordando que a primeira passagem por Portugal durou apenas alguns dias. De volta de Moscou, ainda ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), ele dirigiu-se a Paris para denunciar a situação ditatorial no Brasil. “Fui expor sobre as mortes de presos políticos e bem no dia que eu estava lá, soubemos da execução do Vladimir Herzog. Mais um caso”. Meses depois, após debates com o partido para onde deveria ir, acabou por se instalar de vez em Lisboa, cidade que o acolhe até hoje.
“Vim para cá porque não fiz o que o Prestes [Luís Carlos, dirigente do PCB], queria, que era que eu fosse para a Federação Sindical Mundial na Tchecoslováquia”, relembra o gaúcho. “Eu queria mesmo ir para a Venezuela, mas não tinha como voltar para a América Latina, então convenci o Prestes que eu deveria vir para cá. Ele acabou por aceitar, escreveu uma carta para o Álvaro Cunhal e eu desembarquei de vez para morar aqui no dia 18 de fevereiro de 1976”, conta o imigrante, que, dois anos depois, em 1978, foi o responsável por abrir o restaurante brasileiro mais antigo da capital ainda em atividade: o Brasuca, no Bairro Alto, coração de Lisboa.
Em plena transição democrática - o período entre abril de 1974 e novembro de 1975 é chamado de Processo Revolucionário em Curso (PREC) - a vida dos portugueses não era das mais fáceis na época que Juca desembarcou de vez no país. “Era uma época que a gente sentia nas ruas tudo parado, cidade toda pichada, ainda faltavam produtos para comer. Se você não te abastecia na sexta ou quinta-feira, chegava sábado e domingo, tu não tinha onde comprar, fechava tudo. Algumas medidas, como o salário mínimo já haviam começado a vigorar em 1974, mas só foi mais consolidado e ampliado nos anos seguintes, com a Constituição de 1976 e a estabilidade política”, relembra.
Mesmo com as dificuldades do PREC, momento no qual os soldados das guerras e exilados políticos voltavam ao país e o povo começava a decidir qual seria o caminho que Portugal trilharia, nada era parecido com o clima que era vivido nos anos anteriores à Revolução, como conta ao DN Brasil o jornalista e biógrafo Ruy Castro, que morava em Lisboa e trabalhou como correspondente no país entre 1973 e 1975. “O clima era asfixiante [até o 25 de Abril] e, em certas coisas, como costumes, roupas, censura, televisão, jornais, era como estar na Idade Média. Todas as mulheres se vestiam de preto ou cinza e não se viam jovens nas ruas, exceto os mutilados de guerra”, recorda Castro.
Após o PREC, Juca, antes sindicalista, encontrou na gastronomia o seu negócio de vida em Portugal, uma herança dos dotes culinários que carregava desde a infância. “Meus pais trabalhavam como apoio aos expedicionários na Segunda Guerra e quem fazia comida era eu. Tinha uma avó que era descendente de italianos e aprendi com ela a fazer os temperos de comida italiana. Meus pais deixavam as coisas para mim, e eu fazia, quando eles voltavam para almoçar já estava feito, isso quando eu tinha cinco anos. Com sete eu já fui trabalhar no talho para aprender a cortar carne”, destaca.
Palco de encontros
Juca foi um dos tantos brasileiros aos quais as portas de Portugal se abriram após o 25 de Abril de 1974, data que completa 51 anos na próxima sexta-feira e que findou o regime ditatorial mais longo da Europa (1926 - 1974), um cenário muito diferente do encontrado por Ruy Castro ao chegar ao país. “Acho que, em 1974, não devíamos ser nem 100 brasileiros em Lisboa! Eu, com certeza, não conhecia mais do que uns 20”, conta.
No pós-Revolução, no entanto, enquanto no Brasil a ditadura ainda privava diretos e exilava aqueles que se mostravam contrários ao regime, foi na terrinha que nomes como Leonel Brizola (1922-2004), Augusto Boal (1931-2009) e José Celso Martinez Corrêa (1937-2023) encontraram o seu refúgio. No Brasuca de Juca, muitos destes intelectuais e políticos se reuniam nos diferentes salões do hoje clássico restaurante, que foi alvo de uma “visita” da polícia em 1981, um momento documentado pelo jornal Diário de Lisboa que Juca guarda até hoje. “O Figueiredo [João, último Presidente brasileiro no período da Ditadura Militar] estava em Lisboa. Eis que, num evento de festa aqui no restaurante, inesperadamente aparece a polícia, num dia em que estavam por aqui diversos destes artistas e políticos que haviam saído do Brasil justamente por se oporem ao Regime”, relembra.
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De acordo com a reportagem, no dia 6 de fevereiro de 1981 numerosos policiais fardados e mais outros seis à paisana adentraram o Brasuca de forma bruta, enquanto um camburão cercava o restaurante. Foram pedidos documentos de identidade das cerca de 50 pessoas que jantavam no local: ‘Aqueles homens fardados nem sequer quiseram provar da feijoada, nem cheirar a caipirinha, nem ouvir música do Chico Buarque’, consta na reportagem.
As diferentes transições democráticas
Todo ano, a Avenida da Liberdade, em Lisboa, e outros tantos espaços públicos ao redor de Portugal são tomados por milhares de pessoas que celebram o 25 de Abril de 1974. O Brasil, ao contrário de Portugal, não teve uma revolução e uma data que rompeu com o regime militar: algo que, de acordo com Ruy Castro, não foi necessário. “O Brasil não precisou de um 25 de abril. Desde 1978, a imprensa, por exemplo, já podia trabalhar em paz. Eu escrevia para "O Pasquim" e todos ridicularizávamos os militares. Com a anistia, em 1979, todos os exilados voltaram e o país se tornou uma festa. Em 1982, muitos políticos ligados ao regime democrático que haviam retornado, um deles Leonel Brizola, foram eleitos para cargos importantes”, pontua o biógrafo, afirmando que não houve comparações entre o quão dura foi a ditadura para um país e para outro.
“A ditadura no Brasil durou 21 anos, 1964-85, sendo que nos quatro primeiros e nos sete últimos quase não a percebíamos. Nada parecido com os 48 anos compactos de salazarismo”, entende Castro. “O fato é que, mesmo em sua pior época, embora cerceando os direitos políticos, a ditadura não pôde (ou não quis) cercear o comportamento. Nas Dunas do Barato, por exemplo (uma praia em Ipanema frequentada por Caetano Veloso, Gal Costa e milhares de hippies cerca de 1971), fazia-se sexo e se fumava maconha a céu aberto. Pode-se impedir o brasileiro de votar, mas é impossível encaretá-lo (digo, moralizá-lo)”, sublinha.
Para Juca, a realidade foi diferente. Militante convicto até hoje, por receio nunca se sentiu seguro para voltar ao país para morar, embora tenha passado de visita algumas vezes. Trouxe a família para Portugal, mulher e dois filhos, e construiu toda sua vida em Lisboa. Para ele, a ausência de uma Revolução no país natal é algo que causa instabilidade na política e comportamento de parte da população até hoje. “O Brasil é um país de golpes, desde a época do Marechal Deodoro, indo para Getúlio Vargas, passando por Ditadura, golpe na Dilma, prisão do Lula. E esse saudosismo [do Regime Militar] foi algo que se acentuou no Governo anterior [Bolsonaro] e com a queda dele”, entende Juca ao se referir aos ataques de 8 de janeiro de 2023, momento que implicou na investigação de Jair Bolsonaro no ocorrido, situação que tem sido alvo de protestos por defensores do ex-Presidente que pedem sua anistia.
Ruy Castro vai por outro lado. “De 1985 para cá, tivemos 40 anos de democracia absoluta, sendo o 8 de janeiro uma excrescência semelhante ao 6 de janeiro nos Estados Unidos. Mas, ao contrário dos americanos, o povo brasileiro não apoiou aquele quebra-quebra e essa campanha pela anistia se limita a políticos sem caráter”, defende o biógrafo. “Há realmente uma onda conservadora avançando pelo mundo, mas, mesmo que ela se imponha no Brasil, não será jamais como em outros países. Somos indisciplinados demais.”, complementa.
Do lado de lá e de cá do Atlântico, Juca Oliveira e Ruy Castro são dois dos raros imigrantes brasileiros que viram duas Lisboas muito distintas nos últimos 50 anos. O primeiro ficou por aqui, enquanto o outro, presente num dos momentos mais importantes da história do país, faz visitas constantes até hoje. “Vim-me embora em setembro de 1975 e, quando voltei a Lisboa pela primeira vez, em 1981, a diferença era marcante em comunicações, transportes, comércio, jornais, liberdades. Desde então devo ter ido umas 20 vezes nos últimos 40 anos e as mudanças foram alucinantes. Hoje Lisboa é mais moderna que quase todas as capitais da Europa. Talvez moderna demais, porque, agora, subjugada ao turismo”, pontua.
A subjugação do turismo pode ser refletida no futuro do próprio Brasuca. Questionado sobre quando pretende se aposentar, Juca, que até hoje cozinha e serve no restaurante e que completa em 87 anos em novembro, diz que o momento já tem data marcada para acontecer. “Fico até 2028, que é quando o restaurante completa 50 anos e eu 90. E é também quando iremos fechar, não querem renovar o nosso contrato. É o que está havendo por aí. Vou sentir muito quando tiver que fechar isso”, lamenta o ex-sindicalista, um dos brasileiros que, em Portugal, passou pelas portas que Abril abriu.
nuno.tibirica@dn.pt
Reportagem publicada na edição impressa do Diário de Notícias do dia 21 de abril de 2025.