Lú Araújo: a brasileira pioneira na criação de grandes festivais de música em Portugal
É imigrante e brasileira, sendo uma das primeiras a realizar um evento deste porte em Portugal.
Texto: Amanda Lima
Começa nesta semana em Amarante, no Norte de Portugal, mais uma edição do MIMO Festival. O evento ocorre em diversos espaços da cidade, com dezenas de atividades gratuitas e grandes nomes da música no palco, como Marcelo D2, A Cor do Som e Carminho. Quem é a idealizadora desta iniciativa? É a premiada produtora cultural brasileira Lú Araújo.
Lú é pioneira de diversas formas: em área onde as chefias são masculinas, é um das poucas mulheres à frente de um grande festival. É também imigrante e brasileira, sendo uma das primeiras a realizar um evento deste porte em Portugal. Com diversos prêmios nos dois países, divide os 35 anos de carreira entre os dois lados do oceano.
Em entrevista ao DN Brasil, a profissional conta da experiência de realizar o MIMO, de como promove o empoderamento feminino na música e conta detalhes do festival, que começa na sexta-feira (17).
Como é a tua relação com Portugal?
A minha relação com Portugal é uma relação bem feliz.Portugal é um país que eu gosto de viver. Eu passo uma boa parte do meu tempo aqui. E também, de alguma forma, foi um dos lugares que eu escolhi viver. Porque em cada cidade que o MIMO passa, eu acabo me apaixonando, e em muitas delas eu disse que iria viver. Ah, eu vou viver aqui, vou morar aqui. Em nenhuma delas eu construí um lar. Em Portugal, eu consegui construir isso. Tenho amigos queridos, tenho tido a oportunidade de conhecer mais o país, gosto da diversidade de Portugal, culinária, cultural, a diferença das regiões. Apesar de ser um país pequenino, ele é um país com muitas facetas também, né? Eu tive oportunidade, através dessa vinda para cá e de um financiamento para o meu projeto, para o meu festival. O MIMO é todo financiado com dinheiro de Portugal. Esse ano tem uma excepcionalidade. A Embratur entrou e está sendo parceira, através de um edital que eu ganhei. Mas todos esses anos, essas cinco edições que eu fiz, eu fiz todas com recursos vindos de Portugal. Então, posso dizer que sou uma pessoa bem-sucedida em Portugal nesse sentido das relações, das relações com os parceiros de mídia, profissionais, e pessoalmente também. Embora também existam coisas que nem sempre são tão boas, mas isso acho que poderia acontecer em qualquer lugar do mundo, fora da sua zona de conforto, da sua casa e dos seus familiares.
E por que Portugal para ser a sede, a sede não, ser um dos lugares aqui na Europa para o Festival MIMO, que também tem edições no Brasil?
Portugal foi uma coisa muito natural. O Mimo nasceu em Olinda, em Pernambuco, que é um dos principais resíduos do patrimônio colonial que Portugal implantou no Brasil, principalmente vinculado às questões do patrimônio arquitetônico, da cultura, das igrejas.
A gente escolheu, o Brasil adotou isso como referência para os nossos bens culturais. Esses são patrimônios tombados. E comecei a fazer isso em Olinda, em 2004, numa cidade que tem 22 igrejas, não sei quantos passos e nichos, que são coisas menorzinhas, simbólicas religiosas, mas que não tinham teatro e que não tinham cinema. Dentro dessa lógica, nos primeiros anos do Mimo, eu ocupava só esses espaços. Demorei para ter palco principal, palco grande. Tudo acontecia dentro das igrejas, dos museus e dos casarões onde as pessoas viviam. Dentro dessa ideia, cresci no Brasil para outras cidades de patrimônio. O Mimo já nasceu com esse conceito de ocupação dos espaços do patrimônio histórico com a arte da atualidade. Portugal era afeto, era desejo, embora aquela arquitetura não seja uma arquitetura encontrada aqui, porque é mais fácil encontrar esse tipo de arquitetura que tem no Brasil vinculado a Portugal em outros países do mundo, em outros lugares do mundo. Em Goa, na Índia, nos períodos de ocupação português, se encontra mais similaridade. O que Portugal tem de mais velho? Você chega no Porto e vê os casarões aqui, a própria Lisboa teve a coisa da reconstrução, dos terremotos, de tudo. Então, já tinha uma relação de afinidade. Quando vim a Portugal pela primeira vez, pensei que queria fazer o festival aqui. Mas isso demorou ainda, passou um tempo até que tomei a decisão mesmo. E tomei a decisão principalmente quando cheguei no Porto. Achei o Porto totalmente a cara do que eu queria, do que eu podia fazer. Mas, no final das contas, fiquei ainda entre o Porto e Amarante, que é a cidade em que me estabeleci na primeira edição, e mais ou menos num caminho parecido com o que fiz no Brasil, de um festival que sai de uma região nordeste. O MIMO não fez o caminho tradicional dos grandes eventos no Brasil que se consolidam no Rio e em São Paulo e depois partem para outros lugares. E me estabeleci no Nordeste, com todas as dificuldades que isso tem, e depois ganhei o Sudeste e atravessei o Atlântico. E acho que fiz também um pouco essa rota aqui em Portugal. Fui para a região Norte e adorei Amarante. Inicialmente me sugeriram Amarante. Amarante buscava um evento na época que tivesse esse perfil de ser um festival internacional, que pudesse trabalhar multilinguagens, mas que tivesse foco na música. E foi assim que aconteceu. Fiquei lá, depois fiz uma edição também no Porto, mas voltei agora para Amarante. Estou voltando para Amarante feliz da vida, que é um lugar que eu também me sinto em casa, para duas edições, 24 e 25.
Como é ser mulher imigrante nessa área cultural e em um país diferente, no caso, aqui em Portugal. Quais são os principais desafios?
Olha, acho que nesse sentido são muitos ainda. Vamos começar do princípio. O ambiente da música, da produção, é um ambiente ainda muito masculino, principalmente na chefia. Tem muitas mulheres que estão ali na retaguarda, algumas artistas e tal, mas você não vê muitas instrumentistas, você não vê técnicas de som, mas, em relação aos homens, não vê holds. Então, vê mais na produção. Então, acho que já é um ambiente para a gente, em qualquer lugar, principalmente no Brasil, também aqui, mais áspero. Mas acho que Portugal tem umas outras questões, tem umas chefias, entendeu? Que determinam um pouco do setor. Mas eu fui fazendo o meu caminho meio sozinha, não tenho muitos pais aqui. Tenho trilhado, aprendido, apanhado, levantado e vou seguindo, mas acho que ainda é um ambiente um pouco áspero. Agora, isso nunca é frontal, como eles dizem aqui, muitas vezes, não é uma coisa que diga... Olha, você é brasileira e mulher e eu não quero me relacionar com você. Não dizem, mas as atitudes ainda são muito difíceis. Então, enfrento o que diria uns perrengues nessa área e talvez tenha sido a primeira vez na minha vida que tenha deparado com esse tipo de situação e tenha percebido isso. Em alguns momentos, respiro fundo e vou, em outros, fico bem magoada, porque também já não sou uma menina, sou uma mulher adulta, vivida, com histórico e com profissionalismo.ntão, não gosto muito de perceber esse ambiente. E aí, o que faço para pensar isso? Tento combater isso, levanto minha cabeça, não deixo, peço que me respeitem e tenho também, sempre que posso, empoderado mulheres.
Essa era a minha próxima pergunta, porque, nesse sentido, também é importante que mulheres que estão em posições como a tua também empoderem outras mulheres para que também possam chegar nesse lugar, com o apoio de outras mulheres.
Sim, eu acho que isso é fundamental, até porque eu acho que, já comentei isso outro dia em algumas outras conversas e coisas de entrevistas, que eu acho que, às vezes, a mulher é inimiga da mulher. Eu acho que ainda falta um pouco, no final das coisas tem um discurso comum, mas no dia a dia tem uns certos confrontos, seja disputa de espaço. Quando tem escassez, nem sempre é só uma questão de maldade, é a escassez, é a luta do seu espaço, até de sobrevivência. Acho que é muito importante que as mulheres também empoderem as mulheres. Eu adoro trabalhar com mulher, eu sempre que posso dou prioridade a isso, porque eu me sinto, inclusive, mais confortável. Eu tenho trabalhado cada vez mais na minha programação dando espaço para as mulheres. No Brasil, eu tenho certeza, eu fui um dos primeiros festivais a fazer uma edição só dedicada a mulheres e trans. Isso foi em 2017, em Paraty, e eu fiz um festival internacional misturando artistas brasileiros com gente do mundo inteiro, inclusive a Teresa Salgueiro, de Portugal, o Moçangarredo, Mali, enfim, Baby do Brasil, Elza Soares, todas juntas num mesmo ambiente com a Bahia, acho que se o nome é Bahia, e a Cozinha Mineira, a Línica. Então, acho que é isso, é combater. Já passei por situações de ter, por exemplo, uma profissional trabalhando comigo na produção, já faz algum tempo isso, e ver e saber que ela foi maltratada, por uma equipe de homens técnicos, e também uma atitude de demitir essa equipe, não trabalhar mais com ela. Isso é importante para demarcar a posição. Não, até porque eu sou mulher, como é que posso permitir que alguém seja maltratada dentro do meu ambiente de trabalho? Eu vou estar sendo conivente com isso. Mas acho que vamos avançando e vamos... Espero, não acho que isso é uma coisa para agora ainda, mas acho que o tempo dirá. Mas acho que estou sendo um pouco pioneira nesse sentido das mulheres, porque vejo também muito poucas mulheres donas de festivais aqui. Aqui em Portugal, a maior parte são homens. É, na liderança. Brinco que tenho eu e a Roberta Medina, mas eu não tenho nem minha família perto.
Como você define o MIMO?
Eu trabalho muito, trabalho muito, e trabalho acima de tudo também para fazer um festival que acho que também é importante que Portugal ter. O Mimo é inclusivo, é humano no sentido desse espaço democrático que ele é, seja através da acessibilidade financeira, porque ele é de graça, seja através da possibilidade de abertura de janelas para outras culturas, para a África. O Mimo sempre trabalhou isso, não é uma coisa... Mas tem mais gente também? Muita gente jovem, porque acho que também esses artistas... A gente precisa renovar essas cenas, não pode ficar refém dos artistas tradicionais só. E acho que os festivais têm um papel importante para fazer cumprir isso. Historicamente, no Brasil, os grandes festivais, quantas pessoas surgiram. Até esses grandes nomes da música brasileira passaram e se projetaram através dos festivais. Então, isso é uma coisa que os festivais precisam pensar. E no Mimo eu tenho essa característica de colocar essas pessoas em igualdade de condições. Ele não vai para lá tocar num palco... Lá no cantinho. Lá no cantinho. Ele não vai tocar em condições técnicas inferiores a qualquer outro. Ele vai dividir cartaz com o mesmo tamanho de ponte. Tem uma série de regrinhas. E as mensagens políticas. Claro que isso não é a bandeira do festival. Ele é um festival, sim, que tem um vínculo, tem uma força, tem um porquê. Mas as leituras o público é que tem que fazer, porque, acima de tudo, essa possibilidade que a gente tem de criar uma programação que faça com que as pessoas reflitam e cheguem à sua conclusão, que tenham poder crítico, que possam olhar, parar e pensar um pouco. Então, está todo mundo muito preguiçoso. Estão muito viciados na rede social. Está tudo muito fácil. Então, tem que digerir também. E nada melhor do que unir isso com música. É, com diversão. A possibilidade de você ver um grande concerto num palco bonito. Porque o MIMO é de graça, mas ele não é uma Kombi.
Não perde em nada para um outro festival que cobra um ingresso caro. Acho que poderia ser cobrado muito caro, inclusive, pelo que gasto, pelo que invisto. É difícil trabalhar com essas produções que vêm de outros lugares do mundo mais remotos. Tudo super custa caro. Imagina trazer essa quantidade de brasileiros que trago esse ano, por exemplo. Nem é uma característica de todos os anos, mas esse ano, especialmente, estou trabalhando um tripé que é África, Brasil e Portugal. Então, com pouquíssimas coisas fora dessa linha. Então, poderia ser caro nesse sentido, porque ele também tem um acabamento estético.
E envolve a cidade toda.
Sim, eu trabalho com cidades delicadas, com cidades históricas, com bens patrimoniais. Não posso enfeiar uma cidade, não tenho esse direito, até porque também o Mimo tem outra característica, que é não trabalhar um recinto fechado e ali dentro tudo acontecer. Tenho o desafio de trabalhar uma cidade. O meu cenário é uma cidade. É o Rio de um lado, é a igreja do outro, é o museu. É superresponsa, mas fico bem feliz de poder fazer com que as pessoas convivam com a sua história ou com a história do outro, porque aquilo ali é pura história. Quando você vai assistir a um concerto em uma igreja, acho que tanto para quem interpreta como para quem assiste, ganha novos contornos, entendeu? Além da proximidade com o artista que o público tem e o artista que vê o público muito perto, tem todo um contexto visual de observação. A música tende a ser... Uma vez, um jornal de Pernambuco publicou uma coisa que sempre me emociona quando lembro dessa cena e quando penso em fazer concertos em igreja, que é uma coisa que adoro, é música para ser ouvida ao lado de anjos. É uma música que, naquele contexto, ela calma. Acho que também estamos precisando um pouco dessa paz.
Por isso você decidiu ter uma programação voltada à espiritualidade?
Criei esse ano uma outra linha também. Quero que os festivaleiros curtam os shows, curtam a programação, mas que também trabalhe um pouco o eu, o espírito, a alimentação. Então, há algum tempo eu vinha pensando e criei o Mimo Bem-Estar, que tem uma série de propostas diferentes umas das outras.
Não quero engessar nada. Quero que uma pessoa venha fazer um ritual terapêutico que está vinculado ao trauma, aos pequenos traumas, aos traumas que a gente tem na vida e que a gente nem percebe, que é a Priscila Lobian que vai fazer. Quero fazer uma aula de meditação. Convidei o Tomás Moraes para fazer domingo naquele parque lindo que é o Parque Florestal de Amarante. Uma aula de meditação para as pessoas aprenderem como elas podem meditar, que elas saiam do Mimo podendo também fazer aquela série de rituais que são necessários para você chegar ao estágio de meditação. Tem a Samanta Caldato que vai falar sobre o poder do garfo e faca como elemento social e de mudança na vida das pessoas, seja através do consumo de alimentos, seja através da criação de hortas urbanas.Tem muita coisa legal nisso. Super. Tem a Diva, que é Marisa Cardoso, que tem um trabalho ligado ao Static Dance, que você consegue liberar as energias de entrar em um outro momento do seu eu através da dança. E tudo isso é complemento. É uma parte silenciosa. Fora os workshops.
amanda.lima@dn.pt