Imigrantes vindos do Brasil dão força à luta LGBTQIAP+ em Portugal
"Morram”. Este foi um dos primeiros comentários que ouviram os brasileiros Leandro Buenno e seu marido Rodrigo Malafaia enquanto caminhavam de mãos dadas logo quando chegaram para morar em Portugal, país no qual residem há cerca de um ano e meio. “Foi o nosso cartão de visitas aqui. Tínhamos literalmente acabado de chegar e deixar as coisas no apartamento, demos cinco passos na rua e uma senhora falou isso. Achei uma loucura, até porque é uma coisa que já não estava mais acostumado em São Paulo”, relata Leandro em entrevista ao DN Brasil.
Após 18 anos vivendo na capital paulista, Leandro e Rodrigo, motivados a viverem na Europa, escolheram Setúbal como destino em 2023. O brasileiro conta que as diferenças entre pertencer à comunidade LGBTQIAP+ (lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexo, assexuais, pansexuais, não-binárias) em Portugal, em comparação à uma cidade como São Paulo é notável. “O preconceito que sinto em Portugal é mais parecido com o que já senti muitos anos atrás em cidades do interior do Brasil. Sinto que o discurso também, mesmo em meios mais politizados, ainda é atrasado, existe uma certa desconstrução que no Brasil ocorreu há mais de 10 anos e que aqui ainda parece que está chegando muito lentamente”, entende Leandro.
Cantor e compositor que se tornou conhecido após participação no The Voice Brasil, onde alcançou o top 8 do programa, Leandro utilizou do seu nome público e do crescimento de seu reconhecimento - conta atualmente com quase 300 mil seguidores no Instagram - para levantar bandeiras e discutir pautas focadas na comunidade LGBTQIAP+. Num dia, em uma transmissão ao vivo na rede, falou que era soropositivo: a declaração fez Leandro ser ainda mais respeitado por membros da comunidade. “Falei aquilo numa conversa simples e meu perfil simplesmente explodiu. Falar sobre a minha HIV trouxe uma pauta muito social pro debate e as pessoas se identificaram. Tem pouca gente que fala sobre isso”, pontua.
Em Portugal, o imigrante passou a ter um papel ainda importante ao falar abertamente sobre a sua sexualidade e o HIV. Ele inclusive fez parcerias com o GAT Portugal, centro comunitário que surgiu para dar apoio e proporcionar rastreios gratuitos para “homens que fazem sexo com homens, pessoas que usam drogas, pessoas envolvidas em sexo comercial, migrantes, pessoas trans, não-binárias ou em situação de sem-abrigo”, com vídeos em suas redes que indicavam como funcionava os serviço, direcionados aos imigrantes brasileiros que o seguiam, mas não só.
Para Leandro, esse diálogo fidedigno com a comunidade LGBTQIAP+, que julga ser muito marginalizada na sociedade portuguesa, é algo fundamental. “Acho que falta muita gente ativa, vozes, até mesmo neste setor digital em Portugal. Vejo muitos portugueses agradecendo o trabalho que faço nas redes, dá para ver que tem uma lacuna nesse sentido. Mais uma vez, algo que no Brasil já estamos acostumados e aqui ainda têm dificuldade para engatar. Os brasileiros nesse sentido podem ajudar e vem ajudando muito”, afirma ao fazer comparação com o país natal, que tem uma letra a mais na sigla. O “N”, de não-binárias.
Controvérsias
A complexidade de um país como o Brasil, no entanto, faz com que Portugal seja uma escolha mais segura para parte das pessoas da comunidade LGBTQIAP+. É controverso: se por um lado o Brasil tem uma discussão mais avançada e libertária em espaços acadêmicos, como em atividades e bandeiras de luta de diretório centrais de estudantes de diferentes faculdades, bairros e baladas específicas, os quais Leandro chama de “bolhas”, a violência contra as minorias também se faz presente. “O principal motivo da minha mudança para cá foi por segurança. Sou um homem gay e tive dois sérios episódios de homofobia no Brasil”, conta Alexandre Petarli, que morava no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro.
Nos últimos anos, dados indicam que os números de violência seguem crescendo ao redor do país. De acordo com relatório recente divulgado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), ONG mais antiga da causa na América Latina, em 2024 o número de mortes de pessoas LGBTQIAPN+ aumentou em 13,2%. Foram 291 pessoas da comunidade mortas no ano passado, 34 a mais do que em 2023, quando o país registrou 257 casos. Pessoas travestis e transgêneras foram as mais visadas: 96 foram mortas. Em Portugal, os números evidentemente são incomparáveis pelo fato do Brasil ter uma dimensão continental e ser um dos países mais violentos do mundo. No entanto, foi justamente a partir de um episódio de violência no Porto, com uma travesti brasileira, que a luta ganhou força no país.
Em 2006 Gisberta Salce, imigrante de 45 anos, travesti, prostituta e soropositiva, foi brutalmente assassinada após ter sido violada durante dias por 14 adolescentes com idade entre os 12 e os 16 anos. Seu corpo foi encontrado no fundo de um poço e, depois deste acontecimento, o país despertou para a realidade do ódio contra pessoas homossexuais e trasngêneros. Poucos meses após o assassinato de Gisberta, surgiu a Marcha do Orgulho do Porto, sendo que a primeira edição foi justamente realizada perto da localização onde a brasileira foi encontrada sem vida.
Vinte anos depois a história segue sendo lembrada, afinal, foi também após o episódio que Portugal passou a rever institucionalmente o direito de pessoas trans e homossexuais. No entanto, para alguns imigrantes vindos do Brasil ainda falta um debate mais aprofundado sobre a homofobia e transfobia acentuada com imigrantes, especialmente racializados. “Além de ser uma pessoa não binária, sou uma pessoa negra, e sinto que muitos coletivos pecam pela falta de representatividade neste sentido. Para mim é difícil de me identificar com alguns coletivos portugueses. Acho que é um erro não ter essa atenção com o imigrante, foi justamente por causa da Gisberta que a luta ganhou mais destaque aqui”, lamenta Lucas Reis, ativista LGBTQIA+ que trocou Porto Alegre (RS) por Portugal em 2018.
Militância através da cultura
Em grandes cidades como Porto e Lisboa são diversos os coletivos de luta formado por imigrantes, como o Queer Tropical no Norte e a Casa T na capial, que dinamizam o debate sobre pautas identitárias e organizam ações culturais e combativas, sejam manifestações ou outros atos políticos em defesa da população LGBTQIAP+. Outros grupos de imigrantes do Brasil, mesmo que não tenham sido formados com esse propósito, levam para a área de atuação bandeiras que defendem a diversidade e lutam contra a disseminação do ódio no ambiente de trabalho. É o caso do Coletivo Gira, por exemplo.
Quando se apresentavam em Alfama, as membras do grupo - que é formado apenas por mulheres - sentiam que incomodavam alguns moradores. “A gente viu que tinha que levantar nossas bandeiras e se posicionar com mais veemência porque incomodava ter um povo queer, imigrante, num bairro tradicional da cidade”, relatou ao DN Brasil em agosto do ano passado a vocalista Kali Peres, uma das fundadoras do grupo e transexual. Nas redes, a banda se apresenta como um Coletivo Feminista de Samba, Diversidade e Resistência. Para muitos imigrantes da comunidade LGBTQIA+, o Clube Oriental, em Marvila, tornou-se um espaço de segurança neste sentido.
Paolle Santos, pansexual, relembra como poucos espaços em Portugal têm esse acolhimento. “Em Braga fui expulsa de um banheiro de mulheres, foi algo muito humilhante, em Lisboa já fui perseguida na rua, há sempre um olhar discriminatório. São raros os lugares que consigo me sentir bem, aqui temos o exemplo do Planeta Manas ou do Damas que são visibilidade ao meu trabalho”, diz Paolle, que é drag queen.
Também atriz, produtora e diretora, Paolle recentemente se juntou a outros imigrantes brasileiros LGBTQIA+ para dirigir a peça Divino Banquete, que teve duas apresentações no Teatro Ibérico, também em Marvila, no mês de janeiro. Um outro exemplo da contribuição de quem vem do Brasil para Portugal e ajuda a dar visibilidade à causa que, apesar de ser menos alvo de violência que no Brasil, ainda constitui uma dura realidade.
“É difícil comparar Brasil e Portugal, sinto a violência menor na questão física, até porque o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo ”, diz Paolle, que relata ter passado por quatro agressões quando morava no Brasil. “Mas o ódio em Portugal é o mesmo. Ser odiada, discriminada, receber maus olhares é algo normal do meu dia a dia”, finaliza a artista.
nuno.tibirica@dn.pt
Este texto está na edição impressa do Diário de Notícias de hoje (03).