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Opinião. A Criação do SFI - Serviço de Fronteiras Indígenas
"Pois bem, ‘seu Cabral’. Eu sou do SFI — Serviço de Fronteiras Indígenas". Foto: Bruno Martins / Unsplash

Opinião. A Criação do SFI - Serviço de Fronteiras Indígenas

"O indígena, com um tom grave, gritou do fundo dos pulmões para todos no barco: “Os senhores têm a permissão para o desembarque? Estão com os seus documentos?”

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por DN Brasil

Texto: Diogo Batalha

Fazia já meses que estavam pelo mar quando alguém, do alto do mastro, finalmente bradou: “Terra à vista!”.

Todos na nau celebraram, ansiosos por algo diferente. Até mesmo os mais mareados do balanço do mar sorriam. Ao longe, viam-se palmeiras verdes e majestosas que balançavam ao ritmo da brisa tropical.

Os pássaros cortavam o céu e, ao som das ondas, misturava-se um distante toque de música que vinha da selva. Cabral e seus homens imaginavam a nova terra, os tesouros que iriam descobrir e as histórias que levariam ao rei.

Enviaram um bote para a terra, onde, na praia de areia branca, já os esperava um grupo de indígenas, praticamente nus, mas alguns com armas rústicas nas mãos. Notava-se neles uma expressões de curiosidade e vigilância.

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Ao ver os navegadores se aproximarem, um dos indígenas ergueu uma tábua de madeira entalhada com inscrições que os lusos sequer compreendiam. Um dos homens no barco pensou tratar-se de um presente. Mas o indígena, com um tom grave, gritou do fundo dos pulmões para todos no barco:

“Os senhores têm a permissão para o desembarque? Estão com os seus documentos?”

Cabral, líder da expedição, colocou-se à frente, tentando interceder no contato. “Chamo-me Pedro Álvares Cabral! Viemos de longe, enfrentamos mares e tempestades para cá chegar!”

“Pois bem, ‘seu Cabral’. Eu sou do SFI — Serviço de Fronteiras Indígenas. Pelas nossas regras, todos os visitantes devem portar o Certificado de Residência Indígena, a Declaração de Propósitos Territoriais e, claro, o atestado de ausência de más intenções para com os povos autóctones. Posso ver os vossos documentos?”

Todos no barco se entreolharam, boquiabertos. Nunca haviam ouvido falar em tais formalidades e a ideia de que precisavam de documentos para entrar numa selva parecia, no mínimo, uma piada estranha.

Cabral tentou a última cartada:

“Veja bem. Isso que está a pedir não possuímos, mas temos cá alguns espelhos e objetos que vos podem interessar.”

O indígena retrucou, com uma expressão severa: “Regras são regras, amigo. E as leis indígenas são muito claras. Isso o que está a tentar fazer é uma espécie de suborno.”

Levantou a tábua de madeira, repleta de símbolos indecifráveis, e continuou: “As normas existem para todos, sejam estrangeiros ou membros de aldeias vizinhas. Sem esses documentos, receio que deverão voltar, pois não podem desembarcar.”

Cabral esfregou as têmporas, enquanto os marujos trocaram olhares de desespero. Nenhum estava preparado para que o primeiro contato com o Novo Mundo fosse mediado por tamanha ordem e precisão burocrática.

Cabral, já sem saber o que fazer, perguntou: “Mas não há nada que possamos fazer?”

O indígena, compadecido da história dos navegadores, que estavam há muitos dias no mar, mau-cheirosos e abatidos, decidiu chamar o seu superior para saber qual decisão tomar. Pediu que os navegadores permanecessem no barco até que a resposta chegasse.

Passaram dois dias até que, finalmente, um mensageiro chegou da aldeia com uma mensagem do grande chefe. O indígena do SFI chamou Cabral novamente para lhe dar a resposta:

“De acordo com o nosso cacique, podem obter um comprovativo de morada, desde que dois indígenas — que vivam na mesma aldeia — ofereçam-se como testemunhas enquanto estiverem em terra. Conseguem fazê-lo?”

Cabral, inconformado com a exigência, explodiu: “Mas isso é um absurdo. Nós acabamos de chegar aqui. Não conhecemos ninguém!”

O indígena deu de ombros: “Sinto muito. Procedimentos são procedimentos. Voltem quando tiverem a autorização para atuar em qualquer atividade extrativista, comercial ou missionária. Além disso, falta-lhes a taxa de sustentabilidade e o registo de intenções culturais. Sei que parece um absurdo, mas já aviso que a lei é para todos - seja para o mais humilde dos visitantes ou o mais altivo navegador”.

Após todo o sermão, o oficial do Serviço de Fronteiras Indígenas deu o veredito:

“Infelizmente, terão de voltar para a sua terra.”

E assim, sem a burocracia necessária, sem as autorizações devidamente rubricadas e carimbadas, os portugueses foram obrigados a retornar por onde vieram.

Naquele instante, os navegantes se viram diante de um oceano não apenas de águas, mas de entraves e impedimentos, em que os carimbos e as certidões formavam ondas tão indomáveis quanto qualquer tormenta que já tivessem enfrentado.

Cabral, em silêncio, já pensava no que pediria para Caminha escrever ao rei de Portugal. Deu um suspiro longo e sacramentou, com um olhar de desalento, para quem quisesse ouvir:

“Esta tribo é atrasada demais.”

Diogo Batalha é redator há quase duas décadas (e desde 2015 vive em Portugal). É aracajuano desde que nasceu e detesta que não saibam onde Aracaju fica no mapa. Pai de uma pequena portuguesa, tenta achar palavras para explicar até mesmo o que ainda não consegue compreender.

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