Se alguma visita vem em junho, já sabe que irá conhecer um arraial bem português.
Se alguma visita vem em junho, já sabe que irá conhecer um arraial bem português.Foto: Paulo Spranger

Crônica. Os santos que nos unem

"São arraiais, bailaricos, sardinhas, bifanas, música pimba, manjericos e orações para celebrar Santo Antônio, São João e São Pedro"
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Texto: Cristina Fontenele*

O mês de junho desperta saudade em muitos brasileiros, principalmente nos nordestinos que veem o país se colorir com bandeirinhas para comemorar o tradicional São João com forró, fogueiras, comidas típicas e apresentações culturais. Vivendo em Portugal, vamos experimentando outras referências no cardápio e na forma de celebrar, em uma mistura de culturas e ancestralidade.

Apesar de o Carnaval brasileiro ter mais fama no exterior, o São João é uma das festas preferidas no país, segundo a pesquisa “Cultura nas Capitais”. Os dados mostraram que 78% dos frequentadores de eventos populares participaram de festas juninas, contra 48% que foram a desfiles ou blocos de Carnaval. O estudo foi conduzido pela JLeiva Cultura & Esporte, com patrocínio do Itaú e do Instituto Cultural Vale. 

Em Portugal, os Santos Populares são um ponto alto do ano, período que atrai turistas de vários lugares. São arraiais, bailaricos, sardinhas, bifanas, música pimba, manjericos e orações para celebrar Santo Antônio, São João e São Pedro. Se alguma visita vem em junho, já sabe que irá conhecer um arraial bem português.

Enquanto Lisboa tem as Marchas Populares, no nordeste do Brasil as quadrilhas juninas são parte essencial da festa. Tanto que, em maio deste ano, foram declaradas Patrimônio Imaterial de Fortaleza, minha cidade. Assim como as marchas, as quadrilhas são uma manifestação folclórica que envolve e apaixona a comunidade.

São João é época de também fazer simpatias. Quando adolescente, eu e uma amiga fizemos uma para saber o nome do futuro marido. Tratamos de enfiar uma faca nova na bananeira do quintal de casa, à meia-noite, na madrugada de 23 para 24, rezando uma Salve Rainha. No dia seguinte, cada uma resgatou sua faca e pelejou para interpretar as manchas borradas inscritas na lâmina. Não lembro das iniciais, mas recordo da nossa precoce travessura juvenil.

Quando penso em São João, lembro-me imediatamente de outra amiga: a Socorro Luna, conhecida como a solteirona mais famosa do Brasil. Natural de Barbalha, no Cariri cearense, é uma mulher inventiva, bem-humorada e cheia de energia. Com ela, aprendi a rir mais da vida.

Há vinte e cinco anos, Socorro realiza a “Noite das Solteironas” na Festa de Santo Antônio de Barbalha, evento também chamado de Festa do Pau da Bandeira. A celebração tem quase 100 anos e, desde 2015, é considerada Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Consiste no corte, transporte e hasteamento do tronco de uma árvore, com a bandeira de Santo Antônio no topo. É um momento de grande emoção para fiéis e turistas que lotam a cidade para participar dos festejos.

Este ano, a árvore escolhida foi um jatobá de 23 metros de altura, 1,15 metro de perímetro e com mais de três toneladas de peso. A planta é cortada quinze dias antes do transporte, deixada para secar na mata, e no dia 1º de junho é levada pelos Carregadores do Pau. Cerca de 300 homens se revezam no percurso de 6 km, trasladando o tronco nas costas desde o sítio do corte até o Centro Histórico de Barbalha, onde hasteam finalmente o pau ao lado da Igreja Matriz. A tradição envolve fé, devoção e sacrifício. Tem como contrapartida também o plantio de mudas nativas pela prefeitura.

Socorro, que é advogada, começou sua trajetória no Pau da Bandeira quando foi convidada por um amigo para dinamizar as quermesses que estavam perdendo força na cidade. Criou, então, um ritual próprio que a tornou conhecida em todo o Brasil e faz parte da história de muitos casais.

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Na Barraca das Solteironas, oferece vários itens produzidos a partir da casca do Pau da Bandeira. Tem o chá casamenteiro, a pinga “xô caritó”, o chaveiro com o Santo Antônio de cabeça pra baixo e a casca do pau, tem ainda o kit milagre: casca, medalha do santo, fita, oração e instruções de como preparar o chá. 

Além disso, ela distribui o chá da casca do pau a noite inteira para quem deseja casar. Eu, que já ajudei a preparar as tais lembranças e trabalhei na barraca uma vez, vi como a Socorro é querida e o quanto as pessoas querem encontrar seu par e serem felizes.

A cada ano, no período junino, vejo de Portugal a amiga brilhar no Brasil, aquecendo o coração de tanta gente. Inclusive, já virou cordel e foi tema de escola de samba. Para mim, Socorro é também patrimônio imaterial. Integra a identidade de Barbalha, do Ceará, do Brasil. 

Antes de eu emigrar, Socorro me presenteou com uma estátua de Santo Antônio, a quem é devota e em torno do qual moldou uma forma de viver alegre e pródiga em histórias e afetos. No abraço de despedida, ela me abençoou dizendo: “Seja feliz na terra de Santo Antônio".

*Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
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