Com irregularidades e limitação de direitos, título CPLP completa dois anos
Há exatos dois anos, no dia 10 de março de 2023, o Governo do Partido Socialista (PS) apresentou à imprensa uma solução que animou milhares de imigrantes que estavam na longa e demorada fila do antigo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF): uma Autorização de Residência (AR) que sairia em apenas 72 horas, “exclusivamente online e sem necessidade de deslocação ao SEF”, o chamado título CPLP. O PowerPoint utilizado na apresentação mencionava também os direitos dos titulares: “educação, atividade profissional, formação profissional, saúde, justiça e Segurança Social”, com validade de um ano. Questionado por mim mesma, que estava presente no evento de lançamento, se o documento também permitiria viagens pela União Europeia (UE), assim como os demais títulos de residência, o então diretor-geral do SEF disse que sim.
Não demorou muito tempo para que os imigrantes soubessem que várias das informações ali prestadas não eram verdadeiras: as viagens na UE não eram - até hoje não são - permitidas e o título CPLP não é totalmente reconhecido pelos próprios órgãos do Governo e empresas privadas. Mas, na sequência daquele anúncio em que estavam autoridades do Estado, mais de 100 mil imigrantes, a maioria brasileiros, aderiram ao título de residência, sem saber que não teriam acesso a estes direitos.
O DN Brasil tentou, sem sucesso, contactar Ana Catarina Mendes, ministra responsável pela pasta da imigração da época, e o então diretor do SEF, Fernando Pinheiro, que após sair do cargo foi para a aposentadoria. Sob condição de anonimato, uma fonte que acompanhou o processo afirma que não houve uma articulação prévia sobre como seria o documento. “Na altura, ficámos surpreendidos com isto. Não houve nenhum trabalho prévio com o SEF para preparar o diploma. Foi dito, naquela altura, que ia haver um visto especial para aquelas pessoas, porque havia um acordo bilateral. O SEF teve de se desengomar para preparar um visto que não era um visto, era aquele papel miserável, porque nem sequer houve um enquadramento legal, não foi nada preparado”, argumenta.
O modelo proposto pelo Governo foi de criar um documento semelhante ao dos cidadãos ucranianos que estavam em proteção temporária. Depois da ordem do Governo de António Costa, o SEF criou o título CPLP em questão de dias. “Nós nos desenrascámos numa semana, sem consulta à base de dados, um papel que não existe em lado nenhum, aquilo foi uma invenção apressada do Estado Português”, explica.
Esta fonte e outras contactadas pelo DN Brasil confirmam que o Governo estava ciente de que o papel não daria direito a viajar, diferente do que disse publicamente o diretor-geral do SEF naquele dia em que o documento foi apresentado. “Obviamente que este papel jamais poderia permitir que alguém viajasse. Nós vivemos em Portugal, mas estamos integrados no Espaço Schengen. E obviamente que nem Espanha, nem Itália, nem França, nem mais ninguém conhece um papel, não é? Isto não existe. Todos os documentos emitidos para cidadãos estrangeiros estão devidamente regulamentados pela União Europeia”, explica.
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Meses depois, a própria Comissão Europeia instaurou um processo contra Portugal por causa da questão, confirmando, mais uma vez, a irregularidade. O documento também não permite que os imigrantes façam o reagrupamento familiar, o que também desrespeita as regras da Comissão Europeia.
Várias fontes confirmam ao DN que a operação foi uma maneira de “diminuir a fila de processos”, em uma fase em que o fim do SEF já estava decretado e os funcionários estavam sem saber como seria o futuro, além do volume de trabalho crescendo a cada dia. Esta foi a percepção de advogados brasileiros que atuam nesta área, como Priscila Nazareth Corrêa, que conseguiu, na Justiça, “trocar” o papel A4 em QR Code com um título de residência no padrão da UE para dezenas de clientes. “Pareceu, num primeiro momento, passar a imagem de estar acertando os atrasos, e dando a oportunidade de as pessoas resolverem num ‘passe de mágica’, processos de mais de três anos em concessão de residências, e com isso, fazer uma boa figura no start da AIMA, que ainda aguardava por ser instalada como alternativa ao SEF”, avalia.
Para a profissional, a criação desta maneira do título CPLP pelo Governo anterior não foi por acaso. “Sempre observando o movimento político em Portugal e na Europa como um todo, não consigo afastar a má-fé. Porque não estamos falando de leigos, despreparados, ou inocentes, estamos falando de pessoas que, a todo tempo, têm contato com as normas que compõem o bloco, principalmente em questão de segurança. Criar uma residência precária coloca todo o bloco em risco, e foi um risco calculado. Entendo que era proposital”, analisa.
Thiago Soares foi outro advogado que percebeu que havia algo errado. “Quando a CPLP foi lançada, verifiquei logo que o formato criado pelo Governo visava celeridade na emissão, mas já sentia que daria problemas de adesão nos demais países do Espaço Schengen”, conta ao DN Brasil. O profissional avalia que foi um “erro a falha da publicidade do ato jurídico, esse que Portugal é ótimo em cometer, pois nunca divulga com seriedade as atualizações legislativas para que todos possam se atualizar e respeitar as novas regras legais”.
Priscila concorda que houve falha na comunicação. “Fomentar a pouca informação, a retórica confusa e, enquanto isso, as pessoas vão fazendo a troca da Manifestação de Interesse pelo Certificado CPLP, quando todos estiverem presos nessa residência já se atingiu o primeiro objetivo: a AIMA já está rodando, e talvez a solução do problema nem esteja mais na mão de quem começou a confusão”, argumenta a advogada.
“Época de terror”
Muitos imigrantes sentiram-se enganados pela falta de informações do Governo sobre o documento. Além da impossibilidade de viajar, a falta de divulgação entre os órgãos públicos fez com que os direitos ficassem limitados. A situação piorou depois de março de 2024, quando não foi disponibilizada uma forma de renovar o título de residência. Novamente, o Governo da época, já demitido e depois derrotado nas eleições, não deixou uma maneira de fazer a renovação dos documentos, alegando que existia um decreto-lei que reconhecia a validade.
O DN e o DN Brasil receberam inúmeros relatos de pessoas que perderam inscrição no centro de saúde ou foram demitidas por não estarem com o título de residência em dia. “Muitas demissões aconteceram porque grande parte das residências venceram em 2024, e as empresas não acataram o decreto de prorrogação. Com isso as pessoas eram demitidas e não tinham mais uma Manifestação de Interesse que desse suporte à busca de um novo emprego e ficavam desesperadas. Enquanto isso, a Segurança Social não acatava os pedidos de Subsídio de Desemprego, porque considerava que os títulos estavam vencidos. Tudo extremamente confuso e gerava insegurança jurídica e desgaste às famílias. Foi uma época de muito terror”, recorda Priscila.
A questão também se tornou política. “Nesse caso nunca há culpados. O PS não é culpado porque deixou o Governo e não pôde terminar o que começou. E o PSD não é culpado porque não foi o autor da manobra e toma a posição de herói porque diz que vai acabar com a situação de os imigrantes da CPLP serem considerados de 2.ª classe”, ressalta.
De fato, este tem sido o discurso - mas também a ação do atual Governo - que está com uma operação em andamento para a troca dos documentos. O processo, no entanto, é demorado. O projeto foi para o Parlamento em setembro do ano passado, cinco meses depois da tomada de posse do Governo. Depois, os trâmites levaram mais cinco meses para iniciar a parte prática: convocar os imigrantes para a renovação presencial, utilizando a estrutura de missão criada para pôr em dia a fila de processos da Agência para Integração, Migrações e Asilo (AIMA).
Os que estão agora nesse procedimento lamentam a demora e pelo fato de o Governo anterior não ter deixado claro do que se tratava. “Na época que anunciaram a CPLP, tinha a expectativa que se tratasse de uma residência no formato habitual, um cartão que nos concederia os mesmos direitos que a residência existente, mas foi frustrante receber um papel sem muita credibilidade, até mesmo em órgãos portugueses”, desabafa ao DN Brasil a brasileira Gleyci Freitas, de 42 anos, que chegou ao país em 2019. Para Gleyci, uma das piores partes foi não poder viajar. “Meu companheiro é europeu e tínhamos uma viagem marcada ao seu país e tive medo”, lembra.
Mas, mesmo em Portugal, foi prejudicada. “Algumas vezes fui a órgãos para alterar meus dados e tive uma série de problemas pois não sabiam se era válido ou não. Agora o que espero é que, dessa vez, possamos ter nossos direitos assegurados e que o documento em formato de cartão nos livre do constrangimento de ter que estar sempre com uma folha de papel, tantas vezes ignorada por órgãos, comércios e até mesmo por recrutadores”, ressalta a brasileira.
Laura Lana, de 30 anos, também teve diversos problemas de restrição de direitos desde que obteve o título CPLP e que não ficou claro por parte do Governo as limitações. “Não ficou claro que não poderia viajar, inclusive foi um grande choque pra mim descobrir que eu ficaria presa aqui”, destaca. A possibilidade de viajar pela Europa foi justamente uma das razões que a fez trocar o Brasil por Portugal. “Eu vim pra Portugal justamente porque eu amo viajar pela Europa e era o país mais fácil de permanecer legalmente sem ter que depender de visto de estudo. Eu já chorei tanto por essa situação pois tenho amigos muito queridos em vários países da Europa, vi eles viajarem juntos, sempre me chamando e tudo mais e eu sempre tinha que dizer não”, conta.
Mas não foi apenas em termos de viagem que a brasileira ficou limitada. Ao tentar um site de parcelamento de compras, a CPLP não foi aceita. “Eu tentei mil vezes usar a minha CPLP no suporte ao cliente mas fui impedida, tinha que esperar desbloquear sozinho ou em caso de outros apps/serviços, simplesmente desistir de usar”, recorda. Ao mesmo tempo, diz que o documento a possibilitou ter um emprego melhor e o estatuto de igualdade. Mas, afirma que só vai respirar aliviada quando estiver com o novo título de residência em mãos. “Toda a situação foi muito constrangedora. Minha ficha realmente ainda não caiu, acho que só vou respirar aliviada mesmo com o cartão em mãos. E eu finalmente serei livre pra poder ir pra onde quiser”, relata. O Governo estima que cerca de 110 mil pessoas, a maior parte brasileiras, possuem o título CPLP atualmente em Portugal.
amanda.lima@dn.pt
Este texto está publicado na edição impressa do Diário de Notícias desta segunda-feira, 10 de março.