O sergipano Wilame Lima Vallantin, responsável pelo novo espaço em Lisboa.
O sergipano Wilame Lima Vallantin, responsável pelo novo espaço em Lisboa. Paulo Spranger

Casa Oxente: nova galeria de arte quer criar ponte cultural entre o Nordeste e a Europa

Recém-inaugurado em Arroios, espaço criado pelo sergipano Wilame Lima Vallantin propõe um olhar livre de estereótipos sobre a arte nordestina, unindo residência artística, oficinas e exposições.
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Uma “embaixada simbólica do Nordeste do Brasil na Europa”. As palavras e o desejo são de Wilame Lima Vallantin, sergipano de Aracaju, que vive em Lisboa desde o início deste ano. O projeto em questão começou dentro da própria casa e ganhou forma física na Rua Passos Manuel, em Arroios, onde abriu as portas em setembro a Casa Oxente, uma galeria de arte dedicada a artistas nordestinos e às múltiplas formas de expressão da região.

“A gente tem uma visão no Brasil que é muito reducionista do que o Nordeste é e do que o Nordeste é capaz de produzir e entregar. Isso faz parte de um projeto de embranquecimento brasileiro”, afirma Wilame em entrevista ao DN Brasil. “Fora que no Brasil temos muito aquela ideia de que o que nós temos não funciona, precisamos trazer de fora. Sempre acreditei que a gente devesse olhar com mais carinho para as outras regiões, que é o que propomos aqui", complementa.

Verdadeiro andarilho do mundo, Wilame, hoje com 43 anos, já circulou por diversos lugares dentro e fora do Brasil desde que deixou a sua "pacata vida", como coloca, aos 20 anos. Passou por Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo, depois Suíça, França, Estados Unidos, Áustria e, por fim, Portugal. Na entrevista ao jornal, faz questão de, em primeiro lugar, explicar essa inquietude.

"Eu acho que a primeira coisa que eu gosto de dizer para as pessoas hoje em dia é que eu sou uma pessoa neurodivergente. Eu descobri, já na altura dos 40 anos, que eu faço parte do espectro autista e também tem uma questão de hiperatividade ali que nunca foi diagnosticada. Explico isso porque quando eu vou contar a minha história as pessoas não entendem muito bem os vais e vens", reflete.

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A Casa Oxente nasceu de uma dessas inquietudes de Wilame e também do reencontro do sergipano com a arte — e com ele próprio. Jornalista de formação, ele desde que deixou Aracaju já trabalhou com marketing, programação e inteligência artificial antes de, recentemente, decidir se dedicar integralmente à criação artística. “Trabalhei muito na comunicação, cansei fui aprender a programar. Depois virei programador, também cansei, até que percebi que precisava mesmo era voltar para o campo artístico.”

A ideia de transformar a paixão em galeria foi maturada dentro da sua casa, já em Lisboa, cidade que escolheu morar para "ficar mais próximo de uma cultura que conhecia", após passagem de três anos entre Flórida, nos EUA e Viena na Áustria. Com uma grande coleção de obras voltadas sobretudo ao Nordeste, ele ouviu de seu marido, o francês Gwenäel Vallantin a sugestão de abrir a própria galeria. “Aceitei o desafio e, a partir daí, começamos mesmo o projeto", relembra.

A nova casa

A Casa Oxente começou literalmente dentro da casa de Wilame e Gwenäel, no centro de Lisboa, com as primeiras mostras e encontros ainda em março deste ano. “Eu organizava em forma de galeria e, ao mesmo tempo, recebia pessoas para visitar, ver as peças, participar de saraus e dos projetos que eu chamo de ‘tira-gosto’: alguém fala sobre arte, enquanto a gente bebe um vinho e come alguma coisa”, explica. “Queria um lugar onde as pessoas pudessem se sentir em casa. Acho que era essa busca que eu tinha — de viajar tanto e fazer tanta coisa diferente — e acabei encontrando nesse projeto”, reflete.

Com o crescimento do público e o desejo de dar mais visibilidade à produção nordestina, ele decidiu abrir um espaço físico seis meses depois, quando adquiriu um espaço na rua Passos Manuel, nas proximidades do Jardim Constantino, na Estefânia, freguesia de Arroios. Em setembro, o novo espaço abriu oficialmente as portas. “A Casa Oxente é um espaço onde a gente tenta fugir de todos os estereótipos. O que mostramos aqui são obras feitas por pessoas que viveram no Nordeste, nasceram lá ou pesquisam o Nordeste das mais diferentes maneiras”, explica.

De acordo com Wilame, o desafio inicial foi justamente quebrar alguns estereótipos associados à região nordestina. “As pessoas confundem ou reduzem um pouco as coisas. Recebo muitas ligações de pessoas perguntando se temos uma feira de artesanato popular, algo que, querendo ou não, é redutório. E o que eu explico é que aqui a gente não representa necessariamente aquele Nordeste, que muitas vezes é associado à cangaceiro, solo rachado, cabeça de boi seca e praia. Queremos que as pessoas descubram mais”, sublinha.

Mais do que uma galeria, a Casa Oxente surge com essa vocação de ser uma plataforma cultural nordestina e um espaço de partilha de conhecimento. “O que eu queria era tirar essa visão negativa que já está impregnada dentro do Brasil: aqui a gente parte do zero, para deixar que as pessoas construam sua própria imagem do que é o Nordeste”.

A programação no novo espaço, aliás, vai muito além das exposições, contando também com oficinas, debates e encontros — desde setembro, o espaço já recebeu nomes como Lúcia Santos (filha da designer Janete Costa), Filipe Campello e o curador Orlando Maneschy. Entre as masterclasses, na última semana, por exemplo, a Casa Oxente recebeu a artista Pri Ballarin para uma oficina de bordado livre em chita, enquanto, em novembro, será a vez da fotógrafa Márcia Homem de Mello, que propõe um mergulho poético sobre pertencimento e ancestralidade.

Há ainda um grupo de estudos em arte computacional — uma interseção entre a trajetória tecnológica de Wilame e o universo artístico — e um programa de residência artística gratuita, com hospedagem na sua própria casa. “Como eu tenho um quarto vago, decidimos colocá-lo à disposição de artistas. Há uma convocatória no site, e as pessoas podem se candidatar para ficar entre uma semana e 15 dias aqui para produzir", explica Wilame, ressaltando que o processo é aberto a artistas nordestinos e também a quem tenha pesquisa conectada à região.

Os primeiros residentes já estão inclusive confirmados por Wilame: serão Elaine Bofim, artista que trabalha com poesia e bordado, e Melício Brito, cujo trabalho investiga os estandartes e os símbolos das comunidades nordestinas. “Infelizmente eu ainda não consigo oferecer passagem, mas sempre que encontramos alguém disposto a participar, é uma felicidade.”

Vivendo em Lisboa ao lado do marido, engenheiro que divide o tempo entre Viena e Portugal, Wilame desde que se focou neste novo projeto, tem se dedicado exclusivamente à galeria. “Eu fiquei com aquela sensação de que quem serve a dois deuses não serve a ninguém. Hoje o meu tempo é 100% aqui”, conta o sergipano, que toca o dia a dia com apoio de Thiago Fernandes, responsável pela comunicação e marketing da casa.

Neste primeiro mês de galeria, o público, conta ele, tem sido uma das gratas surpresas. “Uma amiga minha que tem galeria em Madrid me disse para eu não me assustar se ninguém entrasse durante uma semana. E não é que aconteceu o contrário? Todos os dias entra gente e de vários lugares. Achei que seriam mais brasileiros, mas não, são mais os portugueses, ou de outras nacionalidades, como russos, franceses, alemães. Isso é fantástico", diz com orgulho o imigrante brasileiro, que define o projeto em uma palavra: diálogo.

"Eu acho que tudo o que eu posso fazer para abrir canais de diálogo, eu tenho feito. Queremos ser uma verdadeira embaixada simbólica do Nordeste na Europa e mostrar que o Brasil não é só aquela parte ali concentrada no Rio e em São Paulo. É sobre atrair olhares para outras culturas, trocar visões e escutar. Sempre escutar”, pontua.

A Casa Oxente fica localizada na Rua Passos Manuel, número 64A. O espaço fica aberto entre terças e sextas-feiras, das 10:00 - 13:00 e das 14:00 - 19:00. A entrada é gratuita. Mais informações acerca dos cursos, debates, oficinas e residências podem ser encontradas através do site oficial da galeria: casaoxente.pt.

nuno.tibirica@dn.pt

Este texto está publicado na edição impressa do Diário de Notícias desta segunda-feira, 20 de outubro de 2025.
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