Lisboa se tornou a "namoradinha da Europa" para artistas do Brasil
Cantores e compositores dialogam através da música, que é uma linguagem universal. Na área da literatura, a conversa é um pouco mais difícil, mesmo entre países que falam o mesmo idioma.
Texto: João Gabriel de Lima
Em 1500, a frota de Pedro Álvares Cabral levou 44 dias para cruzar o Atlântico na direção da Terra de Santa Cruz. Em 2024, os brasileiros que atravessam o oceano no sentido oposto gastam apenas 10 horas num voo da TAP. Dentro do avião, são necessários 17 minutos para perceber a alma do Portugal contemporâneo assistindo a um curta-metragem disponível na tela interativa em frente à poltrona. O pequeno filme chama-se Na Lisboa do Amanhã e gira em torno de uma música do compositor português Gil do Carmo.“Em Lisboa cabe o mundo inteiro, do Martim Moniz ao Areeiro”, ouve-se no refrão. O verso alude ao fato de que, numa única região da capital portuguesa, é possível encontrar pessoas de 92 nacionalidades diferentes.
Há cinco séculos os portugueses atravessaram oceanos em direção à América, Ásia e África. Hoje, cidadãos de todos os continentes fazem o caminho oposto, enriquecem a vida cultural portuguesa e transformam Lisboa numa das metrópoles mais fascinantes do planeta - uma verdadeira esquina do mundo. “Há algo de distintivo sobre Lisboa”, diz Gil do Carmo ao DN Brasil, em entrevista num café do Largo do Intendente, um dos epicentros do Portugal multicultural. “Aqui no centro da cidade não se formaram guetos, como em Paris e outras capitais europeias. As pessoas se misturam, as experiências culturais interagem e se criam coisas novas”, explica.
O violonista brasileiro Yamandu Costa afirma que encontrou em Portugal não apenas o Brasil, mas também a Índia, o Nepal e a África. A fusão de culturas na esquina portuguesa é notória no mundo da música, mas não só. Na área da gastronomia, é possível comprar naans indianos, pitas libaneses e bagels judaicos na região de Arroios retratada no filme, além de saborear as deliciosas fusões entre as cozinhas portuguesa e brasileira. A enorme cena multicultural criada por portugueses e imigrantes abrange também as áreas de literatura, teatro e cinema.
Como tudo isto começou? Em 1975, o embaixador Marcos Galvão, que hoje representa o Brasil na China, era adolescente e veio com a família para Portugal. O diplomata lembra o furor que a exibição da novela Gabriela, em 1977, causou no país. “Portugal vivia uma efervescência maravilhosa por causa da Revolução dos Cravos, e a telenovela trouxe para o país a música brasileira e um certo atrevimento no plano dos costumes”, relata Galvão. Ao mesmo tempo, acompanhava as notícias de como a libertação política portuguesa inspirou os brasileiros que viviam sob uma ditadura. “Surgiram grandes obras artísticas no período, como o ‘Fado Tropical’ de autoria de Chico Buarque, que celebravam a grande mudança em Portugal”, lembra.
O livro clássico A Terceira Onda, de Samuel Huntington, abre com a descrição da Revolução dos Cravos, marco do que os politólogos chamam de “terceira onda da democratização”. “Viver aquele momento mágico de transformação - eu que vivera antes, também acompanhando meus pais, no Portugal de Salazar - me fez abandonar a ideia de ser médico e me inspirou a entrar no serviço diplomático para assim ser parte da vida pública do Brasil”, afirma o diplomata.
Lifestyle globalizado
O músico brasileiro Pierre Aderne também é, à sua maneira, uma espécie de “embaixador”. Quando mudou-se para Lisboa, em 2011, a cena da música brasileira que vinha dos anos 1970 já estava consolidada. Surpreendeu-se por encontrar muito mais que isso: cabo-verdianos, angolanos, moçambicanos, artistas do mundo inteiro. Começou a frequentar a Casa da Morna, em Alcântara, fundada pelo compositor cabo-verdiano Tito Paris.
A mistura praticada ali o encantou. “Conheci uma jovem cantora portuguesa, nascida em Moçambique, que cantava bonito, na altura dedicava-se à soul music e ao gospel”, lembra. “Ela se chamava Mariza, e mais tarde se tornou uma das maiores fadistas contemporâneas”. Aderne deslumbrou-se ao constatar que, neste e em vários outros espaços, era possível ouvir não apenas o fado português mas também as mornas, coladeiras e funanás cabo-verdianos, os sembas e kuduros angolanos - e, é claro, as inúmeras vertentes do samba brasileiro.
Aderne passou dedicar-se ele próprio a promover o encontro entre culturas. Começou com uma tertúlia musical que reunia músicos de vários lugares, o projeto “Rua das Pretas”. No começo as reuniões eram na casa de Aderne, depois passaram a ocupar diferentes espaços culturais em Lisboa. O que traz tantos músicos de tantos lugares para Portugal? “No caso brasileiro, a meu ver, o mainstream musical ficou dominado por gêneros de alto consumo. Nossa música mais genuína quase não encontra mais lugares para se apresentar”, diz.
O artista se julga filho da boemia tradicional carioca, um tempo em que percorrer Copacabana de bar em bar equivalia a peregrinar por um santuário de grandes instrumentistas e cantores. “Em Lisboa, ao contrário do Rio de Janeiro, esses lugares ainda existem, e a cidade também é uma plataforma de lançamento para os músicos que querem frequentar os festivais europeus. Ainda mais agora que a cidade se transformou numa espécie de ‘namoradinha da Europa’.
A revista britânica Monocle, principal publicação de lifestyle globalizado, dedicou uma longa reportagem à cena multicultural de Lisboa. Lê-se no texto, de autoria da correspondente Gaia Lutz: “O passado colonial criou conexões entre Portugal, seis nações africanas, Brasil e Timor-Leste - no que também é conhecido como ‘mundo lusófono’. Nos últimos 50 anos, ondas de imigração desses países fizeram de Lisboa uma cidade onde culturas convergem. Na música, essas influências agora são expressas por uma segunda geração de artistas que vêm a Lisboa em busca de expandir suas carreiras”.
Na reportagem, Lutz cita a canção “Nova Lisboa”, de Dino d’Santiago - compositor português de ascendência cabo-verdiana - como o hino da movida musical que a cidade experimenta. Santiago ganhou notoriedade internacional ao interpretar o clássico cabo-verdiano “Sodade” ao lado de Madonna -no tempo em que a “material girl”, encantada pela “namoradinha da Europa”, morou numa casa no bairro de Santos.
O mar que une e separa
Cantores e compositores dialogam através da música, que é uma linguagem universal. Na área da literatura, a conversa é um pouco mais difícil, mesmo entre países que falam o mesmo idioma. “Os portugueses há muito tempo têm o hábito de ouvir música brasileira, mas não têm o hábito de ler literatura brasileira”, diz Mirna Queiroz, diretora da Fundação Kees Eijrond - cuja sede, no alto de uma colina com vista para o Tejo, torna-se cada vez mais um dos pontos focais da nova Lisboa multicultural. “A gente acha que é a mesma língua, mas é outra sintaxe, outra semântica, outros códigos culturais”, explica.
Mirna Queiroz, que durante 13 anos foi editora da revista Pessoa, dedicada à lusofonia, observa o número crescente de autores brasileiros frequentando festivais literários em Portugal e se diz otimista em relação ao futuro. “Há pela primeira vez muitas crianças brasileiras estudando em Portugal. Quando brasileiros e portugueses crescem juntos, o contágio é inevitável. Compartilham-se os tais códigos culturais”, ressalta.
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Em outra área, a das artes cênicas, a conversa é mais fácil - e remonta ao movimento iniciado nos tempos da novela Gabriela. De acordo com o crítico teatral brasileiro Ruy Filho, que há dois anos vive em Almada, os artistas brasileiros que aportam em Portugal pertencem, em geral, a três tribos. A primeira delas é a dos atores que ganharam alguma notoriedade através da telenovela. Segundo Ruy Filho, eles ocupam as salas comerciais grandes com suas peças teatrais. A segunda é dos artistas com renome no mundo internacional das artes cênicas, casos da diretora teatral Christiane Jatahy e da coreógrafa Lia Rodrigues, presenças constantes nos teatros públicos.
Por fim, as residências artísticas, que são abundantes em Portugal, constituem o nicho dos artistas jovens, principalmente na área de dança. Para Ruy Filho - que é também investigador associado no Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa - o número de artistas brasileiros em Portugal é crescente e já dá contribuições importantes. “Há toda uma cena negra jovem brasileira e pelo menos uma artista muito importante na cena trans, a coreógrafa e diretora Gaya de Medeiros”, diz.
Gil do Carmo, o protagonista do curta-metragem Na Lisboa do Amanhã, é filho e neto de fadistas que ajudaram a propagar a música portuguesa no mundo. Sua avó, Lucília do Carmo, nascida na região do Alentejo, foi popular na Lisboa da primeira metade do século 20 e se apresentou no Brasil e em Moçambique. Seu pai, Carlos do Carmo, é um renovador do fado e ganhou fama internacional.
Munido dessa bagagem tradicional e aberto a influências externas, Gil do Carmo percorre as ruas da região de Arroios ao longo do filme: barbeiros indianos, músicos africanos, dançarinos japoneses, e o encontro de todos no mercado central que, “como em qualquer parte do mundo, é o pulsar da vida cotidiana”, na narração do cantor. O momento mais emocionante é quando Gil do Carmo entra na Escola da Pena, a mais antiga instituição de ensino infantil de Lisboa. Lá, crianças de 32 nacionalidades diferentes cantam sua composição Mundo Inteiro, numa cena que resume presente e futuro da Lisboa multicultural.
Em seu poema Mensagem, Fernando Pessoa descreve Portugal como o rosto de uma Europa apoiada nos cotovelos, a mirar o mundo inteiro de longe. Entre Portugal e o mundo inteiro havia o mar que separava - e que hoje une. Com suas cores, sons, livros, músicas, coreografias, peças e filmes, trazidas por atores, pintores, bailarinos, instrumentistas, cineastas, dramaturgos, fotógrafos e artistas de todas as áreas, o mundo inteiro navegou para cá, numa invasão que vem transformando o país na vibrante esquina cultural dos dias de hoje. Uma invasão muito bem-vinda – e que traz, sobretudo, riqueza.
dnbrasil@dn.pt
Este texto está na edição impressa do DN Brasil desta segunda-feira (4), junto com o Diário de Notícias.