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"A xenofobia que vivi no Brasil não tem comparação com que eu ouço dos meus amigos brasileiros cá", diz escritor português
Hugo Gonçalves morou quatro anos no Rio de Janeiro. Foto: Paulo Alexandrino / Global Imagens

"A xenofobia que vivi no Brasil não tem comparação com que eu ouço dos meus amigos brasileiros cá", diz escritor português

Hugo Gonçalves conversou com o DN Brasil sobre a obra, as saudades que sente do Brasil, a xenofobia que sentiu e a que vê que os brasileiros sofrem em Portugal, além de outros temas que permanecem atuais.

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por DN Brasil

Texto: Amanda Lima

Era dezembro de 2010, o escritor português Hugo Gonçalves decidiu passar um mês no Brasil com dois amigos escritores. De lá, manteve uma crônica diária sobre a experiência no Rio de Janeiro. Gostou da cidade, das cores, do ritmo, do mar e das pessoas: decidiu voltar depois para ficar por um tempo maior. Por quatro anos, a Cidade Maravilhosa foi a casa do português. Nesse período, escreveu o livro Enquanto Lisboa arde, o Rio de Janeiro pega fogo.

A obra conta a história de um português que fugiu para o Rio de Janeiro na altura da crise financeira em Portugal, no início da década de 2010. “Nada corria bem. Depois, as coisas pioraram”. Assim começa o livro, em que personagem desbrava um novo mundo na eletrizante capital carioca, em um olhar de quem procurou uma cidade vista nas novelas brasileiras tão populares em Portugal há anos.

A primeira publicação de Enquanto Lisboa arde, o Rio de Janeiro pega fogo foi em 2013, quando Brasil e Portugal eram outros, especialmente na realidade da imigração. Agora, em 2024, a obra foi reeditada pela Companhia das Letras, uma chancela da Penguim Random House. Uma nota do autor na nova edição destaca que a aventura, perceptível na narrativa, foi também a aventura de Hugo em escrever, atividade que continuou e continua com sucesso em Portugal, com uma lista de prêmios recebidos pelo seu talento literário.

Hugo conversou com o DN Brasil sobre a obra, as saudades que sente do Brasil, a xenofobia que sentiu e a que vê que os brasileiros sofrem em Portugal, além de outros temas que permanecem atuais, uma década depois da estreia de Enquanto Lisboa arde, o Rio de Janeiro pega fogo.

Dez anos depois, acha que o seu livro continua atual?

Nós podemos apontar pequenos detalhes sobre a tecnologia, ou pequenas coisas, se algum momento se fala de um iPod ou não. O que é interessante, ou seja, aquilo que eu espero que persista com a passagem do tempo, aquilo que se espera que seja um material de literatura, que toque as pessoas, independente do espaço e do tempo, eu acho que se mantém e que tem a ver também com os temas do livro, que um é as migrações, ou seja, aqui fala-se muito de diáspora, não só da portuguesa no Brasil, mas também pela personagem da Margot, dos brasileiros que vêm para Portugal, e desse intercâmbio. E não nos esqueçamos que só no século XX houve um milhão de portugueses que foram para o Brasil, pelo menos dos que se sabe, não é? Então é algo que esta ideia deste êxodo transatlântico, para um lado e para o outro, é muito comum a estes dois povos, que já têm muitas coisas em comum e uma delas é a imigração. É engraçado porque quando o livro foi escrito, o fluxo era mais para lá, e agora é mais para cá, sendo que é um pouco indiferente para aquele fluxo, porque é isso que há em comum, que é essa inevitabilidade de partir, a ponta entre os dois lados, a proximidade e, ao mesmo tempo, às vezes, da incompreensão e impaciência.

Impaciência em entender o outro?

Sim, sim. Uma das coisas que me espantava na comunidade dos portugueses era quando me diziam que eles não falam a mesma língua e, primeiro lugar, dava-me vontade de rir e dizia sempre que os linguistas discordam. E depois eu acho que havia uma certa, senão preguiça, talvez um medo existencial. Eu tentei perceber isso muitas vezes, um complexo de inferioridade escondido, complexo de superioridade, aquela ideia de que a língua é minha e a pronúncia é tua. Mas a língua é viva, é orgânica. Talvez por ser escritor, mas eu sempre vi a língua portuguesa como nossa língua, não a minha língua, ela não tem proprietários. A língua ser falada de formas diferentes é uma mais-valia. É tipo, olha, há várias maneiras de eu dizer várias coisas e é uma espécie de um portal para um mundo próximo, mas que não deixa de ser novo, não é? Acho estranho que isso aconteça.

Por que acha que acontece?

Eu acho que podemos lhe chamar xenofobia, mas, no fundo, é burrice. É o que eu acho, é uma burrice. Porque eu nunca ouvi, em nenhum momento da minha vida, eu vivi quatro anos no Brasil e li livros de autores brasileiros, e interpretei pessoas com sotaques completamente distintos, algo que não percebesse. Em nenhum momento eu podia não compreender uma coisa ou outra, mas em nenhum momento eu senti que não conseguia falar com uma pessoa ou não entendia o que é que ela está a dizer. 

Acha que a visão do Brasil é romantizada aqui na Europa?

Um escritor sueco falou-me de uma coisa chamada Brazilian Blues. Que é, depois dessa fase de deslumbramento, com a exuberância do Brasil, ou do Rio em particular, da cultura, de achar que é o novo mundo. Depois, normalmente, há um período em que chocamos com a realidade complexa daquele país, não é? Que não é só festa e boa disposição. E muitas vezes esta imagem é romantizada pela música, pela literatura, ou seja, por coisas que são verdadeiras em relação ao Brasil, mas que são, normalmente, consumidas fora do lugar. Para mim, mais do que essa diversão de estar na rua, eram os livros do Rubens Fonseca, ou do Reinaldo Moraes, era toda a música que eu tinha visto, as próprias novelas que eu tinha visto em criança. E isso é como me dizia alguém quando eu fui esse mês para o Brasil e decidi que ia morar para o Brasil. Foi quando muitos me disseram que ser turista no Rio de Janeiro não é o mesmo que morar no Rio de Janeiro.

Você citou Rubens Fonseca, quais outros autores brasileiros gosta?

Gosto muito do Sérgio Rodrigues, por exemplo, Reinaldo Moraes, Marcelo Aquino, Machado de Assis, Nelson Rodrigues. Há um livro que eu gosto imenso, que fizeram agora uma série da Fernanda Young sobre velhinhos de Copacabana. Os autores brasileiros foram fundamentais para o escritor que eu sou. Eu me lembro precisamente da primeira vez que li o livro Feliz Ano Novo, do Rubens Fonseca. Lembro-me onde é que estava, lembro-me de ler o primeiro conto. E é como tomar um ácido, uma gotinha de LSD. Há coisas na nossa vida que nos abrem a porta da consciência para novos universos. E eu pensei, ah, mas pode fazer isto com a minha língua? Pode escrever sobre estes temas? Porque a nossa tradição, a tradição portuguesa, às vezes, agora menos, muito menos, mas enquanto eu cresci, é um bocadinho mais circunscrita, mais solene, a escrita é um bocadinho mais composta, mesmo os temas. E eu, ao ler aquele livro, foi como, ah, eu posso fazer isto também!

O livro Enquanto Lisboa arde, o Rio de Janeiro pega fogo incorpora muitas frases do Brasil, como foi essa experiência?

Eu decidi por ficar o mais próximo da verdade possível que é, um português que vive há algum tempo no Brasil, inevitavelmente vai ser contaminado pela forma de falar. Vai utilizar gerúndios, vai dizer geladeira em vez de frigorífico, vai dizer baseado em vez de charro, e então, por uma questão até de sobrevivência, não é? Não vou chegar a casa de alguém e vou dizer, olha, onde é que está o frigorífico? E então eu escolhi escrever dessa maneira. Aliás, é um livro em que eu acho que a linguagem, em todos os meus livros, é a mais livre, é a mais coloquial em alguns momentos. Está contaminada não só pelo português do Brasil, mas pela coloquialidade, pelo palavrão, por anglicismos, por estrangeirismos. Foi muito natural. Os escritores são todos um bocadinho vampiros e ladrões. Eu estava sempre à escuta, frases que eu ouvia em vans, que eu ouvia na praia. Eu lembro-me de uma vez estar numa van cheíssima, a abarrotar, e o motorista dizer, entra, entra, filho, van é como coração de mãe, cabe sempre mais um. 

Na época você recebeu críticas aqui por escrever assim?

Eu não me lembro bem. Acho que na altura houve algumas pessoas que disseram alguma coisa. Mas acho que se fosse hoje, tenho a impressão que sim. E aqui vou usar uma expressão bem brasileira: não estou nem aí. Aquilo que eu faço é de total liberdade. A língua é exatamente isso, é um instrumento de liberdade, de exploração.

Você sofreu xenofobia no Brasil?

Muito pouco, mas senti num momento ou outro. Lembro-me de estar num jantar, até com pessoas bastante letradas no meio, e de uma pessoa estar constantemente a dizer que os portugueses eram literais, e que não tinham sentido de humor. Outra vez que estava num lugar a comer e estavam passando um combate do UFC, bastante violento, e eu até gosto, mas não apetecia estar a jantar e estar a ver sangue a jogar na cabeça de alguém, e pedi-lhe, por favor, muito educadamente, se podia apagar a televisão. Houve alguém que estava ao lado e disse, eu estou vendo isso, se não queres ver, vai para a tua terra. Mas eu senti, enquanto vivi lá, às vezes até pelo contrário, eu até senti um carinho pelo facto de ser português, porque o Rio é uma cidade muito portuguesa também, e as pessoas acarinhavam-me. Mesmo os episódios de xenofobia não tem comparação com os relatos que eu ouço dos meus amigos brasileiros e amigas brasileiras, principalmente das mulheres. Não tem comparação com isso. 

O que você não gostava no Brasil?

Eu cheguei ao Brasil e muitas coisas da cultura carioca ou brasileira me irritavam. Havia coisas que não tinham a ver comigo. Depois, passas a entender, outras não queres entender, achas que estão erradas, mas tens que lidar com elas. Isso é normal. A ideia de que há um eixo, há um fluxo migratório, que as pessoas vão todas chegar e que toda a gente se vai dar bem, isso não existe. Isso acontece entre vizinhos do primeiro e do segundo andar, que são do mesmo país e da mesma cidade. Isso é normal. A forma como nós encaramos essa fricção é que importa, que é do entendimento e da tolerância e não do "vai para a tua terra". É preciso ter esta discussão e, às vezes, a discussão está tão extremada que não temos essa discussão. Às vezes sinto-me triste, às vezes sinto-me revoltado com a forma como eu vejo os brasileiros a serem tratados, de uma forma, de uma violência gratuita. Eu espero que seja uma minoria, quero acreditar que também existe muita gente que é acolhedora.

Você trouxe algum hábito do Brasil pra cá?

A minha mulher diz que eu cumprimento as pessoas com "tudo bem", que é uma coisa pouco portuguesa e bem brasileira. Há um dos hábitos que não podia trazer para cá, é uma daquelas diferenças culturais, que é andar sem camisa. E no Rio eu saía de bicicleta só de calção e Havaianas. Trouxe o hábito da crepioca, que costumava comer na feira. Continuo a comprar a farinha e a fazer em casa.

amanda.lima@dn.pt

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