Crônica: prova de convivência ou de resistência?
"Se habitar um novo país requer pisar devagarinho e testar as fronteiras do pode ou não pode, do é respeitoso ou agressivo, conviver sob as mesmas paredes põe à prova temperamentos e a nossa resistência."
Texto: Cristina Fontenele
Já pensou em dividir a moradia com estranhos? Com a crise da habitação em Portugal, pagar o aluguel sozinha ainda é inviável para muitos portugueses e também para imigrantes. As estratégias passam por casos de aglomeração de pessoas em um mesmo cômodo, para não mencionar situações ainda mais preocupantes. Partilhar para sobreviver tem sido um lema.
No Brasil, já morei com a família, sozinha, hospedei amigos e parentes, vivi em apartamento com esposo, mas compartilhar o lar com pessoas que acabei de conhecer, inclusive de outras nacionalidades, até então era algo inédito. A opção é uma espécie de roleta-russa que pode dar muito certo ou causar inúmeros transtornos. Decerto, você leitor já deve ter ouvido histórias do gênero.
Há situações em que não se tem direito a usar a cozinha, não se pode lavar roupa, não há área comum (até a sala é transformada em quarto), onde é preciso chavear as comidas, ou existe elevada rotatividade de inquilinos e não dá tempo de conhecer os outros indivíduos da residência - quase um hostel.
Nos últimos quatro anos já dividi o teto com Equador, França, Brasil e Alemanha. Minha vivência internacional perfaz altos e baixos mas, no balanço geral, tem sido surpreendente. Ganhei uma hermana equatoriana para a vida, quando eu nem imaginava mais ser possível criar laços tão especiais. Tornei essa amiga praticamente uma cearense e ela me deixou ainda mais latina. Isso para ilustrar o quanto a convivência é rica de possibilidades.
Se considerarmos que a vida a dois apresenta desafios, ter colegas de casa segue a mesma lógica. Até que ponto estamos dispostos a ceder e a repensar a dinâmica das relações? Qual a nossa tolerância ao lidar com o diferente de nós? Temos disposição para desapegar dos nossos costumes e nos abrir para novas experiências?
O compartilhar exige uma série de habilidades para além das requeridas pelo mercado laboral. É preciso ser flexível para acolher outras rotinas e comportamentos, ter empatia para perceber as limitações e necessidades do outro, colaborar com as atividades em prol do bem-estar comum. Tarefa árdua quando todos estamos com expedientes exaustivos. Nem sempre é fácil ser cortês.
O dia a dia ainda nos convoca a ter conversas difíceis, a reavaliar nossas imperfeições e a confiar que todos ali querem uma vida digna e sossegada. Pensando bem, é quase como uma empresa mesmo, só que sem salário e com as contas a pagar no final do mês.
A primeira tomada de consciência quando se coabita é a das nossas manias e aversões. Os hábitos do outro lançam luz sobre nós. Somos uma pessoa mais reservada ou expansiva? Prezamos pela organização ou não reparamos nas coisas fora do lugar? Somos do time do silêncio ou da vida em alto e bom som? Gostamos de visitas ou nos escondemos quando tocam a campainha? E a limpeza (tema sensível), como é na cultura de cada um?
Se habitar um novo país requer pisar devagarinho e testar as fronteiras do pode ou não pode, do é respeitoso ou agressivo, conviver sob as mesmas paredes põe à prova temperamentos e a nossa resistência.
Mas há presentes pelo caminho.
No meu aniversário deste ano, ganhei um bolo alemão saboroso e difícil de pronunciar - Apfelstreuselkuchen, cantaram parabéns em três idiomas - espanhol, alemão e português, e ampliei um pouco mais a percepção sobre outras realidades.
Em conversa sobre nossa terra natal, uma amiga venezuelana contou sobre os tempos de abundância e racionamento em seu país. Foi curioso ouvir o relato de que, ao ver uma fila em Portugal, ela logo se aproxima, pois entende como positivo, uma vez que em seu país ter fila significava que algo bom estava sendo vendido ou doado.
Será a convivência uma espécie de fila que nos convida para um olhar além do próprio umbigo?
Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.