Opinião. O Brasil que me fez dançar
Texto: André Santos Pereira*
Cheguei ao Brasil inundado de sonhos e de fantasia, com a curiosidade de quem quer viver o que imaginou a partir de histórias, lendas e mitos urbanos que passam de boca em boca, um pouco por todos os lugares. Com um grupo de amigos e com a minha companheira para a vida, embarcamos para a mais extraordinária aventura que poderíamos ter vivido: o Carnaval. Essa explosão de cor, ritmo e alegria, era uma utopia que se tornava real. O que vivi foi muito mais do que uma festa. Foi uma energia arrebatadora que atrai, impacta e transforma tudo e todos. O Brasil não se observa, não se conta e não se traduz. Sente-se na pele, nos pés, no coração.
Mesmo antes de tocar no Brasil, ele já fazia parte de mim. Cresci fascinado pela arte de Jorge Amado, que me fez sonhar com as cores e os mistérios da Bahia, e pela poesia musical de Chico Buarque e Caetano Veloso, que me ensinaram que a palavra pode ser melodia. Tom Jobim e sua bossa nova desenharam paisagens sonoras na minha imaginação, enquanto a irreverência contagiante de Tim Maia e a força singular de Evinha despertaram a pulsação vibrante da música brasileira. A voz deslumbrante de Gilberto e a caneta de Vinicius, ecoaram pelo meu quarto de adolescente durante tardes a fio, e Rita Lee e Maria Bethânia traziam vozes que me aproximavam dos cheiros e vidas desse longínquo Brasil. Estes e tantos outros mestres ajudaram a formar-me como pessoa, como pensador, como filho e agora como pai. Ensinaram-me sobre contraste, desigualdade e pobreza. Sobre política e sobre direitos sociais. Mas sobretudo, ensinaram-me sobre alegria, sobre vida, sobre amor profundo e incondicional.
Em Salvador, aprendi que o samba não vem apenas dos pandeiros e dos cavaquinhos. Nasce das ruas, das palmas, do sorriso fácil de quem convida para dançar sem perguntar de onde se veio. Os blocos arrastam multidões numa harmonia quase mágica, onde todos são bem-vindos, todos têm espaço, todos são parte integrante e fundamental. Pelos tambores do Olodum, que fazem o peito vibrar, e no meio da euforia dos trios elétricos, percebi que o Carnaval é mais do que uma celebração: é um manifesto de liberdade, de identidade e de resiliência.
No Rio de Janeiro, a música desce das comunidades para se espalhar pela cidade. As rodas de samba, os pagodes improvisados, a sinfonia de batuques que ecoa pelos morros e praias fizeram-me compreender que, no Brasil, a música é mais do que uma forma de arte – é um idioma universal. A Marquês de Sapucaí, com seu esplendor, é o palco da genialidade de um povo que transforma suas dores e lutas em arte. Em cada passo da passista, em cada batida da bateria, vi uma história contada sem palavras, mas sentida por todos. Vi a melhor expressão de arte que é história, que é deslumbre. Mas que, acima de tudo, é identidade.
Da Bahia ao Rio - e certamente em muitos outros lugares que ainda não tive oportunidade de conhecer - a música brasileira, com a sua essência e sua capacidade de transformar dor em melodia, não é apenas uma herança cultural, mas antes uma celebração contínua da vida e da resistência. Cada batida, cada acorde, é como um grito de liberdade que ecoa em cada esquina do Brasil. E o Carnaval, como a mais grandiosa das festas, carrega consigo esse poder transformador, onde as pessoas se despojam das suas limitações e se entregam à energia da coletividade, transformando um povo num ser único. O brilho dos trajes, o ritmo contagiante, a euforia nos rostos, tudo isso reflete o espírito vibrante de um país que, através da música e dança, encontrou no Carnaval uma verdadeira linguagem universal, que se revela como a materialização da democracia cultural.
Nas ruas, todos se entregam à mesma celebração, vestindo trajes repletos de criatividade e dançando ao som dos tambores que batem em uníssono. Não encontro melhor descrição do que as palavras de Joãosinho Trinta: “Carnaval é o único momento de realidade. Vá você fazer o Carnaval de uma escola de samba no morro e pedir pro negro sair de escravo, ele te manda a... Porque escravo ele já é o tempo todo. Ele gosta é do luxo, ele quer ser príncipe e princesa, que na verdade, ele é e foi e tem direito de continuar a ser”. Esse momento de efervescência é a síntese de uma paixão que não conhece limites, onde a diversidade se converte em união e cada esquina se transforma num palco de amor e respeito mútuo pela cultura, que fazem do Carnaval um ato de intervenção e de profunda democracia.
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Esta forma de viver, ultrapassa o Carnaval. É identitária. Desde os primórdios, a construção da música brasileira emergiu como um autêntico ato de liberdade. Em meio à confluência de tradições indígenas, africanas e europeias, cada compasso e cada batida foram lapidados com a intenção de transformar a dor em melodia e a resistência em esperança. O batuque, o samba e a bossa nova não são meras expressões artísticas – são declarações de um povo que, através da partilha de sentimentos, construiu uma identidade sonora capaz de unir pessoas que por mais diferentes que possam ser, dançam no mesmo compasso – o do amor e da liberdade.
E foi isso que mais me marcou e o que mais levo comigo. O espírito de um povo que, apesar das dificuldades, não perde a capacidade de sorrir, de acolher e de dançar. Vi a desigualdade, senti o contraste entre os mundos que coexistem nas mesmas cidades, mas também percebi uma força coletiva que transcende qualquer estatística. O Brasil é a prova de que a criatividade pode ser um ato de resistência e de que a alegria – alimentada pela ancestralidade e pelo legado africano – é um sublime ato de superação.
Este texto é, antes de tudo, uma ode e um agradecimento. A cada brasileiro que me ofereceu um sorriso, a cada roda de samba que me acolheu, a cada nota que me fez perder o medo de arriscar um passo de dança, partilho nestas palavras o meu reconhecimento sincero. Parti de Portugal para conhecer um Carnaval e voltei com um amor profundo por um país que pulsa, que cria, que resiste e que ensina ao mundo o verdadeiro significado de viver.
O Brasil fazia parte de mim antes de ir e, agora, fazemos parte um do outro.
Obrigado, Brasil. Que sejas sempre casa para o mundo inteiro.
*André Santos Pereira é professor universitário e consultor de Políticas Públicas.