Marcha do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, em Lisboa, no ano passado.
Marcha do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, em Lisboa, no ano passado. REINALDO RODRIGUES

Opinião. Dia sem mulheres: o mundo aguentaria?

"Todos os Dias das Mulheres precisamos lembrar o quanto já conquistamos [...] Mas também precisamos lembrar o quanto ainda nos falta conquistar, um caminho tão longo quanto o que já percorremos"
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Texto: Luísa Cunha*

Todas as figuras importantes do imaginário do mundo são femininas. Coincidência.

São aquelas no papel de nutrir, cuidar, superar dificuldades, levar a psique humana adiante e elevá-la a um status de harmonia. Somos a Mãe Natureza, somos o símbolo da justiça, somos maioria esmagadora no setor de serviços de cuidados, envolvendo educação, saúde e o chamado quarto setor da economia: o invisível, dos cuidados do lar. 

Todos os Dias das Mulheres precisamos lembrar o quanto já conquistamos – um esforço que, na verdade, nunca deveria ter sido exigido. Mas também precisamos lembrar o quanto ainda nos falta conquistar, um caminho tão longo quanto o que já percorremos. E essa luta vai muito além de áreas óbvias como política e mercado de trabalho. Precisamos conquistar diariamente espaço na cultura, dentro de nossas próprias casas e, acima de tudo, dentro de nós mesmas, rompendo a formação silenciosa que nos coloca no papel de gerência obrigatória de todas as vidas ao nosso redor. 

A lista mental de tarefas nos impõe não apenas a necessidade de sentir satisfação apenas quando tudo flui sob nossa ação direta ou indireta, mas também a culpa constante por gozar do ócio. Mulheres vivem no embate entre assumir a indiferença frente à ordem do mundo ou continuar a sustentá-lo. Como uma alusão à brilhante crônica de Amanda Lima, podemos imaginar uma greve feminina. Suspeito que haveria quem esquecesse até mesmo onde fica o próprio umbigo. 

E veja bem, esse exercício é para todos: para os da “outra espécie”, para as mulheres que já assumem com orgulho serem parte do movimento feminista (o que nada tem a ver com revolução violenta - a não ser que violência seja romper com seus costumes e ideais da superioridade masculina) e para aquelas que ainda acreditam que a submissão é uma obrigação natural do feminino. Muitas vezes, essas últimas sequer expandem essa reflexão para além de suas bolhas e batem o pé negando-se parte da causa, enquanto vão à cozinha ou à cafeteria adicionar o peso de seus ideais disfuncionais às mulheres que as servem. 

Ativemos a imaginação para um mundo sem mulheres: 

Você acorda, vai até a cozinha e a pia ainda está cheia. Ninguém se preocupou com isso em doze horas? O que houve? Não há copos para o café nem para a água. Bom, tomemos na rua. 

Hora do banho. Mas não há toalhas secas – afinal, ninguém se lembrou de pendurá-las. E a água? Fria. Que dia vence mesmo essa conta? Está em débito automático? Um banho frio faz bem à alma de vez em quando. Saindo do chuveiro, você procura roupas passadas. Nada. A mágica do mundo sumiu da noite para o dia? 

Na rua, o caos. Pessoas perdidas, tudo fora do lugar. No café, filas imensas. Como assim não há funcionários suficientes? Xícaras sujas? Pandemia de desordem? E você pensa: falta o toque feminino aqui. A barriga ronca, mas a vida segue. 

Na escola, pais desesperados. Não há aulas. Não há professoras. Quem ensinará às crianças a não comer borracha ou zombar do colega pela roupa ou cabelo? 

No hospital, caos semelhante. Ninguém na recepção, doentes esperando por horas. Dentro do plantão, você busca os relatórios da noite anterior. Nada feito. Onde estão as enfermeiras? O telefone toca: sua mãe precisa ser buscada no lar, onde vive com Alzheimer, não há cuidadoras para trocá-la com dignidade. O desespero cresce.

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Você liga para a irmã. Caixa postal. "Deve estar queimando algum sutiã na rua", pensa. Até que recebe um SMS: "Estou em greve de ser funcional. Volto amanhã." 

Comenta com um colega, que desabafa sobre a dificuldade de preparar os filhos para a escola. "Jurei que já tinha ouvido as obrigações daquela rotina tantas vezes que sabia fazer sozinho, mas, no fim, sempre havia alguém ali para me guiar e sem isso não me movia." 

Você senta, perplexo. As mulheres estão de greve. O noticiário confirma: nem o mundo do futebol escapou do caos. 

E você desabafa nos corredores: "Mulheres de greve? Quem lhes deu o direito de retirar dos ombros o peso de fazer o mundo girar? Quem disse que podiam deixar de ser mulheres?" 

Calmamente, uma paciente passa e responde: "Quem lhe deu esse direito de achar que esse peso não é partilhado?" 

Em um piscar de olhos, o mundo parece mais igualitário. Mas você repete: "Foi tudo que sempre soube. Como podem esperar que vivamos num mundo sem tudo que as mulheres movem?" 

Tranquilizem-se: esse mundo é apenas um exercício imaginativo e, infelizmente, ainda está contra a natureza de qualquer pessoa que se identifica com as belezas e os fardos de ser mulher. Somos ensinadas a fazer o mundo acontecer, e é impossível, de um dia para o outro, deixar de fazê-lo. Mas ajudaria, e muito, se pudéssemos, ao menos por vezes, soltar a lista de afazeres mentais, o ideal de precisarmos provar nosso valor a cada passo, canto, livro, chute a gol, relatório entregue ou cuidado prestado para ver a vida como empresárias, mães, atrizes, escritoras, advogadas, enfermeiras, hospedeiras, profissionais da limpeza, balconistas e seres de sucesso que somos. Sucesso sim, porque apesar do mundo e realidade vividas de desigualdades, levantamos todos os dias e vamos adiante, carregando tudo connosco. 

Ajudaria muito se imaginássemos todo dia 8/03 um mundo sem as mulheres que movem sua vida. Este é meu desejo para este Dia das Mulheres, que cada pessoa que não reconhece ou conhece o esforço mental diário de ser mulher, possa imaginar sua vida sem aquelas que fazem o mundo ao seu redor, sua rotina, acontecer. E que dessa reflexão venham mais do que flores e chocolates. 

*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicado à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
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