Luís Montenegro e Lula na cimeira, em Brasília.
Luís Montenegro e Lula na cimeira, em Brasília.EPA/ANTONIO COTRIM

Opinião. A fantasia acabou numa quarta-feira, em plena cimeira

"Tiro o chapéu, contudo, por provar também ser um admirador da cultura do meu país, respondendo às perguntas sobre xenofobia com a mesma habilidade de desvio de um capoeira."
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Texto Luisa Cunha*

Na primeira vez que foi mandada de volta à sua terra, tocava uma Bossa Nova ensurdecedora nos microfones da loja de departamento em que estava. Mas, ao invés de fazer como o estranho lhe mandara e seguir seu caminho para o aeroporto, ficou ecoando nos versos de Vinicius de Moraes e engoliu o choro, afinal, para fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza... "Há de ter nesse país mais do que tamanha avareza."

A primeira vez que lhe disseram que falava errado, que seu português era mal-educado e que imitaram o seu sotaque de um jeito que lhes parecia engraçado, buscou refúgio na senhora que gentilmente lhes servia a comida e soube que também era brasileira. Miraram uma troca de olhares mistos de raiva e tristeza e seguiram ambas na sua prestável serventia silenciosa e contributiva aos fundos da união portuguesa.

Na primeira vez que lhe chamaram puta e lhe imputaram as dores das mães de Bragança, só conseguiu pensar no seu próprio ventre materno, mulher forte que, ainda a 7.000 km de distância, estremecia de certeza. “Jamais imaginei em fazer minha mãe assistir à sua cria, que cuidou e investiu com tudo que tinha, derramar lágrimas despida do próprio respeito e das honras que trazia, sendo obrigada a empenhar-se para provar todo valor e até mesmo sua profissional maestria, só por ser fruto de uma terra de cor verde bandeira.”

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A primeira vez que lhe olharam com desdém foi entre meados de uma conversa que sua presença interrompera, um diálogo que girava em torno de uma novela fantástica que viam na TV, com uma tal personagem Helena, mulher sofisticada e guerreira. Para não fazer jus aos olhares espantados, não deixou transparecer qualquer raiva ou desagrado e resguardou-se na dúvida que Manoel Carlos ali lhe escrevera: "Esse comportamento de ilha em um país peninsular... Por que não querem as Helenas da TV por aqui? Será que não aprenderam então com Jobim? É impossível ser feliz sozinho, ainda mais quando para si não há outra maneira."

Na primeira vez que lhe negaram abrigo por seu sotaque, lhe fizeram suposições silenciosas sobre o uso do seu umbigo, inquirindo-lhe pelo mudo do telefone se estava ali para torná-lo público e fazer daquele teto um prostíbulo. "Não se aluga para brasileiras, menina." Era tudo que, de forma eloquente, se atreviam, mas ela sabia que queriam-lhe na posição de suposto destino, fazendo de lar um chão frio. Resolveu, todavia, deixar-se ir “Preciso andar, ir pelo país a procurar sorrir para não chorar e se alguém me perguntar, digam que eu só vou voltar depois de me reencontrar."

Alguns quilômetros em métrica de anos foram se acumulando e, junto de Cartola na estrada, segui buscando maneira de permanecer no plano sem parecer que havia se tornado só um restolho do que era, vestígios, poeira. Nessa empreitada deu por si que quando teve seu primeiro encontro com o preconceito ainda não tinha sequer colocado o pé para fora da fila da alfândega, que parecia mais uma trincheira. "A menina vem mesmo estudar ou fazer festa?", foram as palavras com as quais Portugal lhe recebera.

Desde aquele balcão tentou entender que luz era essa que seu passaporte azul emitia. "Que cena é essa que minha nacionalidade pinta e que eu desconhecia?" E naquele misto de ânimo e agonia, deixou a resposta mais honesta que concebera: "Com o euro a este valor, meu senhor, quem tem tempo para fazer festa? Vim para cá me criar adulta, nutrir-me de conhecimento e cultura e deixar aqui a força da construção de um sonho. Não sou erva daninha, sou junto de si uma empreiteira. Não basta eu doar-me inteira?"

Já entrou no país violada pela xenofobia, mas os olhos de ansiedade ainda borraram sua vista e não deixaram perceber que o aceno do agente ao seu protesto, que resultou num carimbo positivo e nas cancelas se abrindo para sua passagem, não era em nada um abraço do novo país a todas as bagagens que trazia. Aquele carimbo era não mais do que um ferrete na sua pele brasileira, no seu sotaque e nas suas maneiras. Uma marca que ou se esconde ou se exibe com louvor, mas não cicatriza com nenhuma cura senão uma boa dose de comida caseira.

Finalmente, na primeira vez que sentou ao sofá para ver Brasil e Portugal se encontrando num palácio em Brasília, teve mais uma ponta de esperança de ver sua cultura na rua sendo louvada em horário nobre nacional e não só entre as quatro paredes das casas que acompanham avidamente sua novela, nos pratos dos restaurantes que servem diariamente seu sabor, nos sons das inúmeras lojas que tocam seu som como mantra. "Duas vozes graves sentadas à mesa serão capazes de pôr fim ao sofrimento das quase 600 mil que ficam trancadas em seu próprio íntimo pelo medo de serem rejeitadas feito bestas cabreiras."

Mas a felicidade do pobre órfão de seu país parece a grande ilusão do carnaval: a gente trabalha o ano inteiro, leva nas costas o chicote por não ser réplica e também quando tenta ser espelho, faz de tudo por um momento de aceitação e pertencimento que vá além do joio cultural aclamado separado do nosso trigo corpo brasileiro. Para fazer a fantasia, a gente aceita ser puta e pirata de emprego, enquanto se presta como jardineiro plantando riquezas no país inteiro. "E isso tudo para acabarem com nosso bloco em plena quarta-feira, sentarem numa mesa de pompa da cimeira, deixando meu diploma, meus professores, blocos de rua e meus alívios mais diretos de fora da ponta de sua caneta."

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Não aceito sua gratidão, Sr. Montenegro. Gostava que tivessem exibido em um telão as perdas das minhas virgindades, todas contra minha vontade, e que sofri em Portugal enquanto mulher brasileira. Tiro o chapéu, contudo, por provar também ser um admirador da cultura do meu país, respondendo às perguntas sobre xenofobia com a mesma habilidade de desvio de um capoeira. Por isso, rogo para que abra os portões dos cativeiros onde tem escondido a maioria que acredita nas nossas proximidades verdadeiras e deixe que venham conviver conosco, e que curem a gente de forma derradeira dessa "má impressão" que tem do seu país o imigrante de origem brasileira.

Faltam zeros infinitos no seu "um" caso de preconceito, todos do lado direito. Receio, senhor primeiro-ministro, que sem este reconhecimento, não haverá para nós um jeito.

*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.
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